Antonio Soares
No texto a seguir, o autor aborda os significados por trás de uma manifestação da torcida do Vasco à presença do ex-presidente Bolsonaro em um dos jogos da equipe:

Vamos todos cantar de coração
A cruz de malta é o meu pendão
Tu tens um nome do heroico português
Vasco da Gama, a tua fama assim se fez
Tua imensa torcida é bem feliz
Norte-sul, norte-sul deste Brasil
Tua estrela, na Terra a brilhar, ilumina o mar
No atletismo, és um braço
No remo, és imortal
No futebol, és o traço
De união Brasil-Portugal 1
Dedico este texto ao Silvio e à Leda, vascaínos aguerridos.
O processo de socialização como torcedor de futebol apresenta muitas possibilidades, mas, em geral, ele ocorre no seio familiar. Me tornei vascaíno por influência da socialização familiar. Neto de portugueses, cresci em uma família vascaína, desde meus avós paternos e maternos até meu pai. Acredito que fui ao meu primeiro jogo do Vasco por volta dos 10 anos de idade e devo ter ganhado minha primeira camisa aos 13. Costumava ir aos jogos com meu pai até os 15 anos, mas ele nunca permitia que usássemos a camisa cruz-maltina, pois sempre profetizava que “ir com a camisa do clube aos jogos era um bom estopim para arrumar confusão”. Depois, ia ao antigo “Maraca” com a galera do bairro, que tinha uma colônia de portugueses.
A socialização familiar no futebol é muito forte. Minha filha, hoje na adolescência, estuda em uma escola da Zona Sul do Rio de Janeiro e, em determinado momento, me perguntou qual era o meu time. Respondi: “sou um vascaíno meia tigela”. Como suas amigas já tinham times associados às preferências familiares, ela decidiu que também era, por reflexo, vascaína. Pediu uma camisa, e, claro, eu comprei. Nunca foi a um jogo, nunca me pediu para levá-la, mas como todos seus colegas possuem um time, ela também arrumou um para chamar de seu.
Lembro-me das finais do Campeonato Brasileiro de 1974, quando o Vasco disputou o título em dois jogos no Maracanã. Abro um parêntese: nessa época, eu era um vascaíno de verdade. Até rezava, sem saber para quem, para o Vasco ganhar. Estava no Maracanã no primeiro jogo contra o Internacional. Começamos vencendo por 2 a 0, placar que garantiria a primeira conquista nacional do clube. No entanto, o Inter reagiu e empatou a partida, adiando o sonho do título. 2 Destaque-se que o time do Inter tinha na sua equipe Manga, Figueroa, Falcão, Paulo César Carpegiani, Escurinho e Lula. Com isso, a decisão ficou para o confronto contra o Cruzeiro, que contava com um grande elenco, incluindo Palinha, Dirceu Lopes e Nelinho. Este último era um lateral de chute potente e cheio de efeito. Foi justamente com um desses chutes que Nelinho empatou o jogo, nos fazendo roer as unhas ao marcar um dos gols mais belos que já vi. A partida foi duríssima, pois o Cruzeiro tinha um time excepcional. Sempre que Dirceu Lopes dominava a bola no meio-campo e avançava, a torcida vascaína entoava em coro “é esse!”, temendo sua habilidade e pedindo que fosse parado a qualquer custo. Foi um jogo eletrizante. No fim, vencemos por 2 a 1 e conquistamos, pela primeira vez, o título de campeão brasileiro. 3
Fui me “desvascainizando” a partir da era Eurico Miranda, um verdadeiro autoritário e pilantra, que esteve à frente da gestão do Vasco da Gama, como vice-presidente e presidente, entre 1986 e 2017. Ele era adorado pela maior parte dos vascaínos e odiado pelos torcedores dos demais clubes. 4 Alguns flamenguistas, botafoguenses e outros rivais afirmavam que gostariam de ter um “Eurico” em seus clubes, por seu vínculo emocional com o time, seu estilo falastrão e seu chauvinismo clubístico em relação à nação vascaína. Foi justamente esse chauvinismo que me fez perder a emoção de assistir ao Vasco e de ir ao estádio. Como pesquisador do futebol e alguém politicamente comprometido com a construção de uma sociedade mais justa, democrática e menos desigual, não poderia ser leniente com um líder autoritário como Eurico Miranda.
O Vasco, com sua história de identidade (Hobsbawm, 1997; 1998), consolidou-se como um símbolo da luta contra o racismo no futebol, apesar dessa narrativa frequentemente não explicar como seus dirigentes portugueses eram ativistas antirracistas (Soares, 1999). Para além dessa boa polêmica, o Vasco se tornou amplamente reconhecido como um marco da política antirracista no futebol na segunda década do séc. XX, e esse legado permanece até nossos dias. Assim, o Vasco da Gama é frequentemente retratado como um clube que rompeu barreiras raciais e sociais no futebol brasileiro, sendo valorizado tanto no cotidiano quanto em estudos acadêmicos. Essa identidade foi reforçada no Carnaval de 1998, quando o clube foi homenageado pela Escola de Samba Unidos da Tijuca, que fez dele o enredo do desfile. No entanto, após onze anos consecutivos desfilando na primeira divisão do Carnaval, a Unidos da Tijuca foi rebaixada para o Grupo de Acesso, ficando na penúltima colocação 5, com um enredo que abordava a história do Club de Regatas Vasco da Gama, que, naquele ano, celebrava seu centenário (Soares, 1999). Até então, o Vasco, enquanto equipe de futebol, nunca havia sido rebaixado para a Segunda Divisão. No entanto, anos depois, o clube enfrentou quatro quedas para a Série B, em 2008, 2013, 2015 e 2020, o que, para os mais supersticiosos, fez com que a derrota da Unidos da Tijuca fosse interpretada, retrospectivamente, como uma antecipação dos maus presságios que o Vasco depois viveu no futebol.
Sua história antirracista também foi tema de uma proposta legislativa do vereador Antônio Pitanga, que, como vascaíno e ativista do movimento negro, defendeu a inclusão da trajetória antirracista do Vasco no currículo das escolas municipais do Rio de Janeiro, considerando-a um capítulo essencial na luta da população negra por igualdade no Brasil (Soares, 1999). 6 O feito central dessa narrativa está na conquista do Campeonato Carioca de 1923, quando o Vasco, com um time formado por negros, mestiços e brancos de origem humilde, superou as equipes da elite carioca, representadas por Fluminense, Botafogo, América e Flamengo, compostas majoritariamente por jogadores brancos de classes mais privilegiadas. Essa vitória teria sido um ponto de inflexão no futebol brasileiro, promovendo sua democratização. No entanto, segundo as versões mais difundidas dessa história, a conquista do Vasco não foi bem recebida pelos clubes tradicionais, que teriam reagido criando uma “liga branca” ou uma “suposta liga amadora”, para excluir o Vasco e seus jogadores negros e mestiços da competição de 1924 (Soares, 1999).
Não pretendo entrar nesse debate, embora já tenha escrito sobre esse campeonato e sobre as questões que confundem preconceito de cor, raça e classe no período do amadorismo marrom no futebol (Soares, 1999). O que realmente importa aqui é que meu processo de “desvascainização” vem sendo revertido por um novo processo de “revascainização”, impulsionado tanto pela bravura do Vasco, que, mesmo com um time limitado, luta com determinação, quanto pela carismática presença do jogador argentino Pablo Vegetti. Ele personifica o espírito aguerrido do Vasco que eu torcia e assistia nos anos 1970 e 1980, lembrando a garra de Miguel, Moisés, Fidelis, Alfinete, Zanata, Roberto Dinamite, Luís Carlos e do grande “arqueiro” argentino Andrada, também conhecido como “Él Gato” 7. Como esse goleiro salvou o Vasco! – embora, em alguns raros momentos, ele também protagonizava “frangos” incríveis.
A minha “revascainização” deu um passo a mais. No último dia 5 de fevereiro de 2025, quando o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), indiciado pela tentativa de golpe, compareceu, com seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (vestido com a camisa do Vasco), ao estádio Mané Garrincha (Brasília) para assistir ao confronto entre Vasco e Fluminense, válido pela 8ª rodada do Campeonato Carioca. Durante o jogo, um punhado de torcedores chamou o execrável de “mito”, mas uma forte turba vascaína gritou mais forte em coro: “Uh! Vai ser preso! Uh! Vai ser preso!” 8. Esse foi mais um evento que ajudou a me reconectar com o Vasco e com os vascaínos.
Eurico Miranda e Bolsonaro pertencem à mesma estirpe autoritária. A diferença é que, enquanto o chauvinismo de Eurico pelo Vasco parecia genuíno, o de Bolsonaro é apenas voltado para angariar poder no campo da política, “empregar” todos os filhos nos parlamentos federais, estaduais e municipais e saquear o patrimônio público – além de rasteiras vantagens, como a venda de relógios pertencentes à União e a organização de esquemas de “rachadinhas” em proveito próprio. Não sei se Bolsonaro será preso, mas os indícios são fortes e justificariam uma longa estadia na cadeia. Caso a previsão venha a se cumprir, teríamos o prazer (como Vascaínos) de vê-lo atrás das grades com a camisa do Flamengo alternando com a do Palmeiras.
Viva o Vasco! Que sua história de identidade, para além de seu legado mitológico de clube antirracista, possa também assumir agora um caráter antifascista, consolidando uma nova fase de sua identidade histórica. Que o atual presidente, o ex-jogador Pedrinho 9, aliado de Bolsonaro 10, aprenda a entoar o coro a partir das evidências criminais e de sua torcida: “Vamos todos cantar de coração! Uh! Vai ser preso!”. 11
1 Essas são as duas primeiras estrofes do hino do Vasco.
2 Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=imCtEpyTnaM. Acesso em: 18 de fev. 2025.
3 Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=KxsKBRNakVs. Acesso em: 18 de fev. 2025.
4 Apesar de um documentário a seu respeito trazer uma parte que dá voz à família e a amigos que pintam a trajetória de Eurico com “lápis de cor”, ele também apresenta o traço autoritário, irascível e desonesto do cartola e ex-político. Disponível em: https://globoplay.globo.com/a-mao-do-eurico/t/5H7QQv9zs8/. Acesso em: 18 de fev. 2025.
5 Cf.: https://ge.globo.com/futebol/times/vasco/noticia/2024/02/10/vasco-ja-foi-enredo-de-escola-de-samba-no-carnaval-relembre.ghtml. Acesso em: 18 de fev. 2025.
6 Cf.: https://ge.globo.com/futebol/times/vasco/noticia/com-a-voz-do-vascaino-antonio-pitanga-e-imagens-de-craques-vasco-homenageia-negros-mais-uma-vez.ghtml. Acesso em: 18 de fev. 2025.
7 “Arqueiro” é uma expressão, hoje desconhecida pelas novas gerações, para nomear a posição do goleiro. Andrada foi o goleiro que sofreu o milésimo gol de Pelé.
8 Cf.: https://veja.abril.com.br/coluna/radar/bolsonaro-ouve-vaias-e-uh-vai-ser-preso-no-jogo-do-vasco-em-brasilia. Acesso em: 18 de fev. 2025. Vale assistir também o vídeo “Uh! Vai ser Preso”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wWNDwAuQjXQ. Acesso em: 26 de fev. 2025.
9 Cf.: https://blogdopaulinho.com.br/2024/06/29/pedrinho-emporcalha-o-vasco-da-gama-com-os-irmaos-bolsonaro/. Acesso em: 18 de fev. 2025.
10 Cf.: https://jovempan.com.br/eleicoes-2018/rio-de-janeiro/ex-jogador-pedrinho-vai-disputar-eleicao-pelo-partido-de-bolsonaro.html. Acesso em: 18 de fev. 2025.
11 Indico, por fim, o conhecimento de uma música feita, a partir do acontecimento, para o Carnaval de 2025. Disponível em: https://www.instagram.com/reimont/reel/DGBZZ41uqJ-/. Acesso em: 26 de fev. 2025.
Referências:
HOBSBAWM, E. A produção em massa de tradições: Europa, 1789 a 1914. In: HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A invenção de tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
HOBSBAWM, E. Sobre história. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
SOARES, Antonio Jorge. O racismo no futebol do Rio de Janeiro nos anos 20: uma história de identidade. Revista Paulista de Educação Física, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 119-129, jan./jun. 1999. Disponível em: https://www.leme.uerj.br/wp-content/uploads/2010/10/o-racismo-no-futebol-do-rio-de-janeiro-nos-anos-20-uma-historia-de-identidade.pdf. Acesso em: 18 de fev. 2025.
Sobre o autor:
Antonio Jorge Gonçalves Soares é Professor Visitante da UFRN, Professor Titular da UFRJ e membro do INCT Futebol. É doutor e mestre em Educação Física pela Universidade Gama Filho. Também é um dos editores do blog Bate-Pronto.
A presença de Bolsonaro em um jogo do Vasco deu a ver algumas das tensões na política institucional brasileira. Se você se interessa pelas relações entre futebol e política, poderá gostar também do nosso artigo: E as bets? Devemos proibir pobres do Bolsa Família de apostarem?
Como cita:
SOARES, Antônio Jorge Gonçalves. “Vamos todos cantar de coração”: Bolsonaro vai pra prisão... Uh! Vai ser preso! Uh! Vai ser preso!. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.2, n.5, 2025.
“Vamos todos cantar de coração”: Bolsonaro vai pra prisão... Uh! Vai ser preso! Uh! Vai ser preso! © 2025 by SOARES, Antônio Jorge Gonçalves. is licensed under CC BY-NC-SA 4.0
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