João Vitor Cardoso Sudário
Território é, com certeza, um dos conceitos mais trabalhados pela ciência geográfica ao longo de sua existência. É um conceito multidisciplinar e, por consequência, multiterritorial. Obviamente, o jogo de palavras aqui tem como intuito demonstrar mobilidade linguística. No entanto, também há a intencionalidade de expor que existe uma movimentação do conceito em relação a ele mesmo e aos sujeitos que o manipulam. Gottman (2012), geógrafo francês que, posteriormente, se tornou morador dos Estados Unidos, nos traz uma definição introdutória interessante para território:
Território é uma porção do espaço geográfico que coincide com a extensão espacial da jurisdição de um governo. Ele é o recipiente físico e o suporte do corpo político organizado sob uma estrutura de governo. Descreve a arena espacial do sistema político desenvolvido em um Estado nacional ou uma parte deste que é dotada de certa autonomia. Ele também serve para descrever as posições no espaço das várias unidades participantes de qualquer sistema de relações internacionais. (Gottman, 2012, p.523)
Considerando o que Gottman (2012) define como conexão ideal do espaço e da política, podemos construir – ou melhor, interpretar – as dinâmicas territoriais direcionando o nosso olhar para o movimento, grupo ou recorte em torno do qual pretendemos trabalhar, através da ótica da política. Somado a isso, é indispensável que a análise seja construída com apoio do que acontece no mundo, uma vez que a relação político-espacial se desenvolve a partir de tempos-espaços que encontram bases em relações políticas de dominação e apropriação (Haesbaert, 2004; Souza, 2022).
Em uma tentativa de tornar nossa reflexão menos abstrata, utilizaremos, como exemplo, movimentos sociais urbanos. No nosso caso, torcidas organizadas de futebol e suas alianças. É preciso recuar um pouco antes de contextualizarmos nosso objeto nas contemporaneidades, para ressaltarmos que o fenômeno das torcidas organizadas – hoje nominadas dessa maneira – é construído a partir de um processo histórico importante que caminha em conjunto com a formação social brasileira (Toledo, 1996; Mascarenhas, 1999) – sendo, assim como outros segmentos, fruto de conquistas também populares.
Retornando às torcidas como elas são hoje, é quase uma condição sine qua non relacionar suas práticas aos recortes territoriais, seja por apropriação de um espaço – territorialização no estádio, por exemplo – ou em casos de dominação sobre outros territórios, como nos confrontos entre grupos por valorização da identidade territorial. Dessa maneira, ao considerarmos as nuances de dominação e apropriação dos territórios pelos grupos de torcedores organizados, pode-se perceber que a análise geográfica das torcidas contém tendências territoriais estratégicas (Lacoste, 2012) – seja a partir de uma lógica zonal ou reticular, sobretudo ao considerarmos contextos como globalização e o capitalismo tardio.
É levando em conta a necessidade estratégica do território para as torcidas que as alianças entre diferentes agremiações de times são formadas, se mobilizando entre uma lógica de território-zona (organização individual por torcida) e território-rede (alianças) – quanto a essa variação de conceitos, sugiro os trabalhos de Haesbaert (2004) e Souza (2022). Por tudo isso, considerando o contexto brasileiro, é importante mencionar as três principais alianças entre torcidas, sendo elas: União Punho Cruzado, União Dedo Pro Alto e União Punho Colado.
O objetivo desta pesquisa é entender o comportamento das alianças entre torcidas organizadas do futebol brasileiro em uma perspectiva de interface conceitual entre território-zona e território-rede. Mais especificamente, nota-se a necessidade de se observar o caráter de expansão das redes entre torcidas e seus movimentos, identificando a quantidade de alianças estabelecidas em cada união e, por fim, cartografando os panoramas dentro dos territórios.
No percurso teórico-metodológico, este trabalho parte de bases bibliográficas do campo geográfico, abordando conceitos-chaves como o de “território” e “rede” para, dessa maneira, compreender a noção de território-rede. No que diz respeito às referências, destacam-se Haesbaert (2004, 2009, 2014, 2021), Souza (2022) e Lacoste (2012). Além disso, no que tange aos aspectos das sociedades de controle e segurança, características muito presentes em torcidas, nota-se a importância de Foucault (2008a, 2008b, 2008c), além de Deleuze e Guattari (2010, 2011).
Como aparato prático, o presente trabalho pretende utilizar-se da cartografia como instrumento de análise estratégica geográfica (Lacoste, 2012) para mapear, de maneira individual e coletiva, as redes traçadas pelas uniões de torcidas dentro do território. Dessa maneira, pretende-se entender e demonstrar a mobilidade dentro das redes e/ou as concentrações em formatos de zonas.
Enquanto resultado, observa-se, de maneira inicial, que as torcidas atuam em uma lógica zonal no que diz respeito às suas ações individuais dentro de sua organização interna – subdivisões entre grupos da mesma torcida como, por exemplo, os Pelotões, que são hierarquizados a partir de uma estratégia central, semelhante ao processo que se realiza entre estados e municípios. No entanto, ao mesmo tempo, adquirem uma lógica de território em rede para demonstrar o poderio de suas alianças e expansão de suas atividades, vide os acordos ao longo do território. É preciso ressaltar que o trabalho ainda se encontra em elaboração e pesquisa, sendo, portanto, passível de outras interpretações.
O presente trabalho, portanto, espera contribuir com as discussões a respeito dos movimentos de torcidas organizadas em suas complexidades, sobretudo no que circunda suas mobilidades e estratégias de manutenção de poder. Além disso, proporcionar diferentes olhares sobre a temática – no nosso caso, o olhar do campo geográfico acerca da problemática em questão.
Referências
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia. São Paulo: Editora 34, 2010.
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008a.
FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008b.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 2008c.
GOTTMANN, J. A evolução do conceito de território. Boletim Campineiro de Geografia, v. 2, n. 3, p. 523-545, 2012.
HAESBAERT, R. Dilema de conceitos: espaço-território e contenção territorial. In: Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 95-120.
HAESBAERT, R. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. Porto Alegre, 2004.
HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2021.
HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Bertrand Brasil, 2014.
LACOSTE, Y. A Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. 19. ed. Campinas, SP: Papirus, 2012.
MASCARENHAS, G. A geografia e os esportes: uma pequena agenda e amplos horizontes. Conexões, v. 1, n. 2, p. 46-46, 1999.
SOUZA, M. L. Território e (des) territorialização. In: SOUZA, M. L. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial, 2022. v. I. p. 77-110.
TOLEDO, L. H. Torcidas organizadas de futebol. Autores Associados, 1996.
Sobre o autor
João Vitor Cardoso Sudário é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista de Mestrado Nota 10 na Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). E-mail: joaovitorcsudario@gmail.com.
Este texto é uma adaptação da apresentação realizada pelo autor no I Encontro INCT Estudos do Futebol Brasileiro, realizado de 5 a 7 de agosto de 2024, em Florianópolis.