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Foto do escritorINCT Futebol

Sobre valores esportivos, rivalidades e contradições: a dupla GRENAL em evidência

Cristiano Mezzaroba

Gustavo Roese Sanfelice

Daniel Machado Da Conceição



Dificilmente algum(a) brasileiro(a) não se sentiu tocado diante das enchentes, inundações e grande destruição que acometeu boa parte do território gaúcho a partir de final de abril de 2024 e boa parte de todo o mês de maio. A mídia brasileira mobilizou sua estrutura e seus profissionais e fez uma ampla e, por vezes, saturada cobertura diante daquela situação em que a realidade, impactada pela resposta voraz da natureza às ações humanas, ia se apresentando por meio da chuva que não parava, da destruição que aumentava e assustava, da grande quantidade de pessoas que buscava se salvar e encontrar um abrigo para depois tratar de seguir sua vida.


Como é próprio desses momentos, de forma semelhante ao que vimos recentemente com a pandemia de Covid-19, circulam discursos que enfatizam a tomada de consciência, a solidariedade, a empatia, a união, etc. Não foi diferente com a tragédia enfrentada pelo Rio Grande do Sul, principalmente em Porto Alegre e sua região metropolitana. E, num estado em que o futebol é parte da cultura e explicita aspectos de sua historicidade combativa, que contribui para a divisão clubística dos gaúchos na formação daquilo ao qual hoje se tornou banal se referir pelo termo “polarização” (no senso comum da política, por exemplo, embora bastante errôneo, por sinal, como se houvesse uma esquerda, que é quase centro, versus uma direita, que está bem para seu extremo), o azul, representado pelo Grêmio, e o vermelho, representado pelo Internacional, não ficam de fora dos acontecimentos e reflexões.


Com toda sua estrutura impactada e comprometida para treinamentos e jogos, as duas equipes, em estratégia inédita, no dia 21 de maio, uniram-se para divulgar uma campanha para ajudar na reconstrução dos lugares atingidos pelas enchentes, com a ação intitulada “Jogando Junto – Pela reconstrução do RS”, mobilizando atletas, dirigentes (o presidente gremista, Alberto Guerra, e o presidente colorado, Alessandro Barcellos), torcedores, empresas e a mídia de forma geral. A junção das duas instituições clubísticas gerou a criação de uma imagem, na cor roxa, resultado da mescla entre o azul gremista e o vermelho colorado. Divulgou-se que as equipes iriam ceder espaços em seus uniformes e também em suas mídias sociais para dar visibilidade a empresas que participassem de ações para a reconstrução do Estado e das pessoas afetadas. Cogitou-se, também, a possibilidade do Grêmio ceder seu centro de treinamento ao Inter, e o Inter, por sua vez, ceder o Estádio Beira Rio para jogos do Grêmio. Segundo dados do Portal Terra, na data da publicação da matéria, a estratégia já havia viabilizado o montante de R$ 28 milhões.


Ainda sob os impactos da tragédia, pensamos: que iniciativa interessante, os dois grandes adversários que dividem com suas cores o estado quando o assunto é futebol, unidos em prol de algo maior, ainda mais em tempos de discursos de ódio e de enxurradas de desinformação e fake news, já que temos experienciado que as tragédias têm sido momentos para o mal se alimentar!


Com grandes dificuldades nas competições que participam, Grêmio e Inter sofrem mais que seus adversários em relação a deslocamento (é necessário considerar que o aeroporto de Porto Alegre segue sem operação e provavelmente apenas no final de 2024 voltará a operar voos normalmente), o que impacta, também, nas rendas de bilheterias e outras implicações. Até a presente data de elaboração dessas reflexões, 21 de julho, o Grêmio encontra-se na zona de rebaixamento no Campeonato Brasileiro, o Inter está na 13ª posição – embora ambos com jogos a menos; o Inter não se classificou para as oitavas de finais da Copa do Brasil e perdeu o primeiro jogo da segunda rodada na Copa Sul-Americana, necessitando vencer o jogo de volta para seguir na competição. Ou seja, não há dúvidas de que os fatores decorrentes da tragédia em Porto Alegre afetam de forma direta os dois clubes!


Passado o momento de sensibilização da tragédia, com o arrefecimento da discursividade midiática, da ideia – como também vimos com a pandemia de Covid-19 – de “volta à normalidade” da vida comum, eis que entre os dias 18 e 19 de julho surgem publicações em portais de internet informando que o Grêmio pediu emprestado o Estádio Beira-Rio ao Internacional para ter o mando de campo em Porto Alegre, e o clube colorado recusou. Segundo o Portal UOL, a justificativa para a recusa seria técnica, em função do aumento da quantidade de jogos no Beira-Rio, o que poderia danificar o gramado, além de a diretoria colorada ter sido aconselhada a não ajudar o Grêmio, em função da rivalidade.


No Portal GZH, temos a manifestação do técnico gremista Renato Portaluppi, que, em sua entrevista coletiva no dia 19 de julho, comentou: “A verdade é que ninguém quer ajudar o Grêmio. Essa é a realidade. Todo mundo, na hora da enchente, ‘ah, vamos dar as mãos’. O Grêmio pede ajuda e ninguém dá essa ajuda aí.”


Redes sociais coloradas, logo em seguida, trouxeram postagens mesclando as matérias que deram destaque ao não empréstimo do Beira-Rio ao Grêmio com a fala rápida de Renato Gaúcho, que assim afirma: “O Internacional nunca vai ter nossa ajuda, pode ter certeza disso. Nunca! Enquanto eu estiver aqui, o Internacional não vai ter ajuda do Grêmio nunca!”. Este “nunca” de Renato está contextualizado a possíveis resultados de vitória do Grêmio que beneficiaria o Internacional (em outros momentos), mas o peso da palavra se perde no ar e se recoloca no imaginário da torcida para “todas” as situações possíveis. Inclusive, reviver situações como a ocorrida em 2009, em que Internacional e Flamengo disputavam o título. Na última rodada daquele Campeonato Brasileiro, Flamengo e Grêmio se enfrentaram, um empate daria o título para o Inter, mas o rival entrou com time reserva e repleto de meninos do sub-20. No pênalti que decretou a vitória do Flamengo, o goleiro gremista nem esboçou reação para evitar o gol.


Essa rivalidade infantil, pueril e birrenta, que se reduz ao “quanto pior o outro estiver, melhor eu estou”, significa, na prática, ausência de conquistas para ambos clubes, isto é, os monumentos esportivos (títulos), mas não só: reconhecimento de elencos e atletas, recursos financeiros com patrocínios, fortalecimento do clubismo fora das fronteiras do estado gaúcho, entre outros impactos promovidos pelo êxito em campo. Essa rivalidade e egoísmo talvez explique o motivo de Grêmio e Inter, na era dos pontos corridos, não terem sido campeões brasileiros, enquanto a região sudeste acumula títulos, justificados somente pela questão econômica na montagem dos elencos vencedores.


A discussão que propomos aqui, diante desse exemplo, refere-se aos ditos valores esportivos, como, neste caso, a união, a solidariedade, a empatia. Não se trata de uma discussão clubística, porque, para conhecimento de quem nos lê, os autores são grenais (Cristiano, gremista; Gustavo e Daniel, colorados). Trata-se de evidenciar que a propagação de belos discursos, envolvendo agentes do campo esportivo e do campo midiático, como no caso da tragédia ambiental (e política!) gaúcha, no momento de crise, procura sensibilizar, mas com a vida seguindo seu curso, constatamos que se refere apenas a uma discursividade. 


Não se traduz de forma efetiva em união e solidariedade (nem precisamos falar aqui sobre o universo da política) e em conscientização.  Quando se fala em ajuda, remete-se a um futuro em que a decisão do tipo de ajuda que será dada está circunscrita a outro conjunto de forças (seja o desejo da torcida, ou até de dirigentes e conselhos deliberativos e de gestão). A solidariedade ou tão somente a fala sobre ela termina quando há outros interesses em “jogo”, ou seja, um valor de altruísmo e de ajuda ao próximo (neste caso, instituições esportivas), quando se está vinculado a uma passionalidade clubística.


É mais um exemplo claro de que a dimensão do cotidiano, na esfera que for, é dominada por valores do capitalismo: o individualismo, a competição, a sobrepujança... e, no caso de agentes do campo esportivo, na figura do treinador gaúcho, das contradições e hipocrisias humanas.  Justo ele, vangloriando-se “malandro”, que costuma dizer que não há problema tirar vantagem. Temos aí mais um exemplo do universo do futebol em relação direta com nosso modo contemporâneo de viver, sofrendo as consequências ambientais e evidenciando dimensões políticas e econômicas. Precisamos falar mais das hipocrisias que se referem aos tais “valores do esporte”! Por essa razão, o esporte, especificamente o futebol, revela nosso drama social e seu protagonista, o “homem cordial”, que atua soberano.


Referências








 

SOBRE O AUTOR:

Cristiano Mezzaroba, UFS/INCT-CNPq

Gustavo Roese Sanfelice, FEEVALE/INCT-CNPq

Daniel Machado Da Conceição, NEPESC/UFSC/INCT-CNPq

 

COMO CITAR:

MEZZAROBA, Cristiano. SANFELICE, Gustavo. CONCEIÇÃO, Daniel. Sobre valores esportivos, rivalidades e contradições: a dupla GRENAL em evidência. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.16, 2024.


Sobre valores esportivos, rivalidades e contradições: a dupla GRENAL em evidência. © 2024 by MEZZAROBA, Cristiano. SANFELICE, Gustavo. CONCEIÇÃO, Daniel. is licensed under CC BY-NC 4.0



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