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Foto do escritorINCT Futebol

Sobre a polêmica “Santa Ceia” dos jogos de Paris 2024

Atualizado: 31 de jul.

Antonio Jorge Gonçalves Soares



No último domingo, 28 de julho, disparei pela minha caixa de mensagens o texto “Notas sobre a abertura dos Jogos Olímpicos: escritas no calor da emoção” 1, publicado no blog Bate-Pronto, do INCT Futebol, e escrito pelo meu amigo Victor Melo, um grande especialista e pesquisador da história do esporte no Brasil e na África. O texto dele, como o próprio título informa, foi escrito no calor da emoção. E foi nesse calor do fato que foi publicado no referido blog (o mesmo em que este texto também está sendo publicado), como uma descrição e análise que traduz alguém apaixonado pelo esporte e antenado com a perspectiva de que o papel desse fenômeno social não se limita às competições esportivas nas quadras, campos, raias, ondas, pistas, ringues, dojos, etc. Esse fenômeno é, como nos alertou DaMatta (pensando o futebol no Brasil, o que eu o amplio para o esporte), o lugar do drama em que as rivalidades, as paixões, as vitórias e as derrotas no campo refletem as tensões, os conflitos e as aspirações da vida cotidiana e das nações, revelando as divisões e hierarquias sociais, preconceitos, valores, assim como lugar de oportunidades de mobilidade, de superação e de transformação de indivíduos e coletividades. Acho que o ritual de abertura dos Jogos de Paris significou mais que uma mera etapa que marca o início da Olimpíada. 


Nas mais de 500 mensagens que enviei via WhatsApp, me perdi nas repostas que diziam que o texto trazia exatamente aquilo que as pessoas assistiram e sentiram pela televisão. Inclusive, uma colega que estava assistindo ao vivo, a cores e debaixo de chuva, disse o seguinte: “Adorei o texto. Estou em Paris, peguei muita chuva e vi basicamente pelo telão. Fiquei encharcada, de água e de alegria. Foi antológico. Sobretudo pra uma fã de Rafa Nadal, Teddy Riner, Zidane e Marie-José Perec. A circulação tava bem chata, mas quem veio pra cá sabia disso. Nada a reclamar”.


Se recebi várias mensagens efusivas, ainda no calor da emoção dos leitores, também recebi aquelas que diziam que, apesar do texto ser interessante, a abertura teria quebrado com a tradição, tendo sido muito poluída, longa e dispersa pela cidade; ao contrário das anteriores que foram concentradas dentro de um estádio. Mas, a crítica mais contundente foi que a cerimônia de abertura deveria ter explorado as riquezas do país sede (acho que explorou) e agregado união e paz ao invés de polêmicas que mexem com a religião e “promovem a desagregação”. A cena que teria alimentado a polêmica foi a da Santa Ceia envolvendo personagens LGBTQIAPN+ e pessoas de diferentes etnias como uma releitura de um mundo mais diverso e plural.  As redes sociais ficaram inflamadas.


Recebi no Facebook uma postagem, da qual reproduzo parte aqui, que aponta uma forma de leitura diversa daqueles que viram a Santa Ceia na abertura dos Jogos: “Durante a cerimônia de ontem à noite, uma cena envolvendo personagens LGBTQIA+ gerou polêmica. Muitos acreditaram que a inspiração fosse ‘A Última Ceia’ de Leonardo da Vinci, mas, na verdade, foi ‘A Festa dos Deuses’ de Jan van Bijlert! Eu, como mestre em história da arte, percebi que os personagens representavam deuses da mitologia e não os apóstolos. A Festa dos Deuses se passa no Monte Olimpo, onde os deuses estão reunidos para um banquete celebrando o casamento de Tétis e Peleu. Apolo, coroado e identificável pela sua lira, preside no centro da mesa. (olha o Jesus dos desinformados)” 2. Compartilhei essa mensagem com um amigo crítico da abertura para falar que outras possibilidades de leitura estavam no debate, que rapidamente me enviou uma imagem comparativa da pintura de da Vinci e a cena de abertura. 


Afirmei que achava interessante tal polêmica, porque a arte afeta as pessoas de alguma forma. Essa cena na abertura foi uma obra de arte, pois afetou muita gente que se sentiu incluída nesse mundo e outras que pensam que o mundo deve ser apenas de seus iguais, e que as tradições inventadas – por sinal, como todas são – devem ser “respeitadas e mantidas de forma estática”. Em tese, não vejo problema algum naquela representação feita na abertura dos jogos, seja “A Última Ceia”, seja “A Festa dos Deuses”, no Monte Olimpo.


Não sou especialista e nem conhecedor de arte. Mas o quadro de da Vinci é claramente uma representação criada para a Igreja Católica; ele cria ficticiamente uma das versões da Santa Ceia que em nada deve ser semelhante à vivida por aquelas pessoas naquele tempo e depois descritas na Bíblia – livro também reconstruído a partir de uma série de textos dos “cristianismos primitivos” até sua unificação em livro sagrado 3. A Santa Ceia é representada como um altar de santos. Normalmente, os convivas não se sentam apenas de um lado da mesa, a não ser que seja para uma fotografia (que não era, por questões tecnológicas, possível) ou num palco ou altar para uma pintura (os caras estavam fugindo do Império Romano). Da Vinci cria da sua imaginação um altar de santos. A própria Bíblia atual e traduzida traz versões da Santa Ceia em Mateus 26:26-29; Marcos 14:22-25; Lucas 22:19-20 e Coríntios 11:23-26 (esse último capítulo escrito pelo Apóstolo Paulo que foi perseguidor de Jesus). Lembro que o Apóstolo Paulo não conviveu face a face com Jesus durante o ministério terrestre do último. Ele se tornou cristão após a morte e ressurreição de Jesus. Paulo, originalmente chamado Saulo, era um fariseu zeloso e perseguidor dos cristãos. Sua conversão ocorreu enquanto ele estava a caminho de Damasco para prender cristãos. Nesse caminho, ele teve uma visão de Jesus ressuscitado que o chamou para ser um apóstolo aos gentios. Paulo se autodenominou apóstolo, tal como Valdomiro, Edir Macedo e outros que, sem nenhuma mediação institucional, também se autodenominaram apóstolos no presente e fizeram seus bons e rentáveis negócios da fé. 


Voltando à Paris da abertura dos Jogos, penso e intuo que essa cena no espetáculo geral também acaba por criar um tensionamento com a história recente dos assassinatos dos jornalistas do Charlie Hebdo, quando fizeram uma charge de Maomé. Penso que um estado livre e laico tem que dar direito de expressão a qualquer opinião ou sátira livremente sobre qualquer religião, tal como as religiões possuem direito de dizer o que é certo e o que é errado para os seus adeptos e de criticar publicamente os comportamentos sociais que não aprovam para os seus fiéis – elas fazem isso livremente sem nenhum constrangimento imposto pelo estado. A religião da república idealizada é a laicidade, a liberdade, a lei, por outro lado, devo lembrar mais uma vez que as religiões (e boa parte é fundamentalista por natureza) expressam como deve ser o mundo excluindo a diferença. Excluindo, por exemplo, a homossexualidade – que, no caso da Igreja Católica, é recorrente entre o clero e não assumida como prática –, a bigamia, a poligamia e outras formas culturais e de expressão de gênero e sexualidade. Assim, no espaço público, o estado deve permitir a luta por outras formas de representação do mundo e de existência, apesar daquilo que desejam as religiões e seus líderes seculares.


Não vejo problema que o espetáculo dos Jogos tenha trazido, em tese, essa cena para dizer o oposto do que diz o catolicismo que inventou essa representação a partir de uma encomenda feita ao Leonardo da Vinci. Da Vinci pintou um Jesus loiro e branco, a imagem idealizada de um “europeu bonito”, com vestes impecáveis numa mesa farta com uma toalha linda, vinho, etc. É mais que improvável que um grupo de perseguidos pelo Império Romano tenha se reunido dessa forma, isso se a Santa Ceia tenha realmente existido ou não tenha sido um lanche, um cafezinho ou uns copos de vinho com pão, com bebedeira ou não, em algum “aparelho” usado naquele momento de clandestinidade e fuga.


A Última Ceia, de da Vinci, foi pintada a pedido de Ludovico Sforza, o Duque de Milão. Ludovico Sforza, também conhecido como Ludovico il Moro – não posso perder a piada: não deve ter sido boa coisa pelo nome e devia estar arrumando alguma boquinha no governo da época... (risos) – que foi mecenas de Leonardo da Vinci durante o tempo em que o artista viveu em Milão. A obra foi encomendada para o refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, onde ainda pode ser vista hoje. A Última Ceia foi pintada entre 1495 e 1498 e é considerada uma das maiores obras de arte do Renascimento. Portanto, estamos diante de invenções de tradições que a Igreja se apropriou e criou, e posteriormente se espalharam por seus altares e nas paredes das casas de cristãos.


Voltando à abertura dos Jogos, se a polêmica cena se refere, como apontam, à representação de da Vinci que se tornou tradição inventada no catolicismo a partir das escrituras sagradas, faz sentido que os idealizadores da abertura façam sua releitura e pensem em inflexões dessa tradição. Acho que deram uma bola dentro criando um tensionamento para dar visibilidade àquilo que o mundo escondeu e não “dá mais para segurar, ocultar ou esconder, explode o coração” (parafraseando Gonzaguinha). Explodiu os corações de conservadores que querem “seu mundo de volta” e dos progressistas que lutam por um mundo diverso. Nesse espaço do debate, com esses freios de arrumação, poderemos pensar um mundo diferente que já se tornou visível também na classe média branca com seus filhos e filhas que desafiam a tradição quando se assumem héteros, trans, gays, lésbicas, bi e outras formas de expressão e identidades no mundo.


Se foi realmente a Santa Ceia representada na abertura dos Jogos, penso que para um leitor atento às escrituras (várias vezes reescritas ao longo dos séculos), Jesus estaria feliz, segundo o que foi escrito pelos seus apóstolos:


Mateus 11:28-30: “Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.”

João 6:37: “Todo o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora.”

João 3:16: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.”

João 7:37: “E, no último dia, o grande dia da festa, Jesus pôs-se em pé e clamou, dizendo: Se alguém tem sede, venha a mim e beba.”

Romanos 10:13: “Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.”

Apocalipse 22:17: “E o Espírito e a noiva dizem: Vem. E quem ouve diga: Vem. E quem tem sede venha; e quem quiser tome de graça da água da vida.”

Pelo jeito que narram os livros da atual Bíblia (no Novo Testamento), Jesus não discordaria da releitura na abertura dos Jogos de Paris 2024, seja ela de da Vinci ou de “A Festa dos Deuses”, no Monte Olimpo – pouco importaria. Jesus provavelmente diria que da Vinci não representa a imagem daquelas pessoas da cena na refeição e muito menos representa o sufoco que viveram naqueles dias em que, com o cerco final do Império Romano, não deve ter sido fácil e nem tranquilo se esconder naquele mundo.


Por fim, como diria meu amigo Victor Melo (no texto que repassei nas redes sociais), a abertura dos Jogos de Paris “incorporou sem parcimônia antigos e novos arranjos das linguagens – artes plásticas, cinema, literatura, dança, música, moda – colocando de forma explícita o esporte nesse quadro.” A arte serve para isso: para afetar e fazer pensar. Em conversa com Victor sobre a polêmica, ele me disse: “Os caras que bolaram a abertura devem estar felizes com o furdunço que criaram! Fizeram pra isso né? E conseguiram! No frigir dos ovos, você pode gostar ou não gostar, tá tranquilo, direito de cada um!”


P.S.: Se há algo que faltou ser representado no ritual de abertura de Paris, foi a abissal desigualdade econômica entre pessoas, povos, nações, estados e continentes nesse mundo desigual que será bem representado no quadro final de medalhas. Os ideais da Revolução Francesa, “Igualdade e Fraternidade” ainda estão longe de serem realizados, devem ser perseguidos num mundo no qual as guerras, a fome, a indignidade pública não foram debeladas para dizermos que vivemos num mundo livre, igualitário e fraterno.



 

SOBRE O AUTOR:

Antonio Jorge Gonçalves Soares: é Professor Visitante da UFRN; Professor Titular da UFRJ e membro do INCT Futebol.



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