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O futebol não inventou o mundo...

Victor Melo (UFRJ)


No texto a seguir, o autor discute imprecisões históricas cometidas por alguns estudos do futebol, como a crença de que o Fluminense foi o primeiro grande clube do Rio de Janeiro e a de que o futebol foi o primeiro esporte a alcançar popularidade no estado.


Público assistindo a uma competição de remo no Rio de Janeiro em 1905. Imagem1: PICRYL
Público assistindo a uma competição de remo no Rio de Janeiro em 1905. Imagem1: PICRYL

Entre acadêmicos e não acadêmicos, entre pesquisadores e cronistas, entre iniciantes e experientes, entre gente que se dedica profissionalmente à investigação do futebol e outros que só ocasionalmente o citam em seus estudos, é quase uma unanimidade o fato de que o Fluminense foi o primeiro grande clube do Rio de Janeiro, uma expressão de uma elite burguesa que se organizava na cena pública.


Não se discute a relevância histórica da agremiação das Laranjeiras; contudo, ela não foi a primeira a ocupar um lugar de destaque na representação pública do esporte na cidade. Sem considerar alguns clubes de turfe do século XIX – como o Jockey Club e o Derby Club –, foi outra sociedade esportiva que se projetou, entre o final do século XIX e os primeiros anos do XX, como a mais importante da capital: o Clube de Natação e Regatas, atual Clube de Natação e Regatas Santa Luzia. Fundado em 1896, teve sua sede original em um barracão vizinho ao Passeio Público, demolido em 1905 para dar lugar às obras da Avenida Beira-Mar. Em 1907, o clube foi reinstalado na Rua de Santa Luzia, então situada à beira do litoral da cidade.


O Natação e Regatas não foi o primeiro clube de remo do Rio de Janeiro. Além do mais antigo Guanabarense e das agremiações anteriores (a primeira foi criada em 1851, a Sociedade Recreio Marítimo), surgiram antes dele o Clube de Regatas Botafogo (1894) e o Clube de Regatas do Flamengo (1895), sem falar nos dois fundados em Niterói (o Gragoatá e o Icaraí, ambos de 1895).


A grande importância do Natação e Regatas foi ter sido o primeiro a estruturar e promover competições naquela que era a área mais nobre da cidade – o Centro, que já se estabelecia como polo fulcral da vida social (boa parte da população vivia na região), econômica (os grandes negócios estavam por lá estabelecidos), política (as instituições da República se situavam nas redondezas) e cultural (a vida artística e divertida tinha suas principais iniciativas naqueles arredores).


O clube foi criado, integrado e liderado por gente das elites urbanas – isto é, não ligada diretamente à economia agrícola, mas sim ao comércio e às profissões liberais – que vivia na região central e frequentava as Praias da Lapa e do Boqueirão do Passeio, hoje não mais existentes em função das sucessivas obras, mas na época as pioneiras em um hábito que melhor se delineara desde os anos 1870, embora tenha raízes anteriores: os banhos de mar. Naquela faixa de litoral, foram abertas as primeiras casas de banho do Rio de Janeiro. No momento em que o Natação e Regatas surgiu, eram sete, depois transferidas para a Rua de Santa Luzia e São Cristóvão.


Com seus remadores e nadadores desfilando seus corpos musculosos pelas ruas da região mais importante do Rio de Janeiro, o Natação e Regatas rapidamente se integrou à dinâmica de uma cidade que cada vez mais ocupava a cena pública (Melo, 2001; 2022). No século XIX, uma peça de revista e um periódico de mesmo nome foram uma expressão do que ocorria: o Rio Nu. A capital se denudava simbólica e materialmente, e a agremiação náutica da Praia da Lapa assumia o protagonismo esportivo com seus eventos sempre animados, reconhecidos pela presença de muitas belas “jovens senhoritas”, outro sinal das mudanças em curso.


O Natação e Regatas rapidamente tornou-se a referência de clube esportivo, reconhecido como uma agremiação organizada, centro de formação de um modelo de juventude que se esperava poder conduzir o país ao progresso, expressão civilizada dos novos tempos. Pela sua sede, passaram grandes personagens da política, economia e cultura nacionais – basta dizer que teve dois presidentes da República como associados, Campos Sales e Nilo Peçanha. 


Espalhada pela praia, ruas adjacentes e Passeio Público, a população comparecia em peso a seus eventos. Foi uma primeira ocorrência melhor delineada de massificação esportiva, relacionada àqueles dois esportes que efetivamente se constituíram em uma ruptura – a natação e o remo, que colocaram em definitivo o corpo no centro da cena.


Não surpreende que o primeiro clube de futebol da cidade tenha surgido em sua sede: o Rio Futebol Clube, criado dias antes do Fluminense. Da mesma forma, ali foi feita a primeira reunião das agremiações futebolísticas do Rio de Janeiro no intuito de criar a Liga Metropolitana e o primeiro campeonato. A entidade foi fundada numa reunião no Fluminense, mas a primeira reunião foi feita no Natação e Regatas, que, aliás, já sediara as pioneiras União de Regatas Fluminense (1897), Conselho Superior de Regatas (1900) e a durante décadas poderosa Federação Brasileira de Sociedades de Remo (1902).


Por que esse clube é tão pouco citado? Por que estou trazendo esse tema à baila?


Nas últimas décadas, tenho tido a honrosa possibilidade de participar de muitas bancas de mestrado e doutorado, orientar dissertações e teses, fazer pareceres para revistas, assistir a palestras, entre outras ações, nas quais a história do ludopédio é o tema central. E não poucas vezes comecei minha avaliação, de forma irônica, dizendo: “o futebol não inventou o mundo”.


A desconsideração do Natação e Regatas e quase unânime consideração do Fluminense como pioneiro grande clube do Rio de Janeiro são, entre outras, expressões de duas ocorrências, a meu ver, no mínimo limitantes, se não equivocadas: encarar o futebol como um fenômeno extraordinário, sem o inserir profundamente na constituição do campo esportivo em terras fluminenses; não ter em conta claramente o cenário histórico no qual ele se estruturou.


O futebol é um fenômeno incrível, mas é parte de um processo de desenvolvimento do fenômeno esportivo. No Rio de Janeiro, faz parte do terceiro ou quarto momento de estruturação do campo, antecedido pelo turfe, remo, ciclismo, atletismo, um percurso que data pelo menos dos anos 1850, sem considerar algumas ocorrências pregressas, registradas desde a década de 1810. Uma das chaves de seu sucesso é ter se inserido num cenário em que a gramática esportiva já era conhecida e apreciada pela população.


Obviamente, vale referência que alguns clubes ligados ao remo tenham depois abraçado o ludopédio, caso do Flamengo e do Vasco. Citemos também aquelas agremiações de bairro dedicadas aos dois esportes que se uniram dando origem a uma sociedade única, caso do Botafogo e do São Cristóvão. Houve especulações de que o Natação e Regatas se uniria com o América e o Clube de Regatas Guanabara se uniria com o Fluminense, ambas ao fim não concretizadas. Essas ocorrências são tanto uma expressão do aumento da presença social do futebol quanto da ressonância e respeitabilidade lograda pelo remo.


Mais ainda, o ludopédio se estruturou num momento em que melhor se delineava o processo de massificação cultural e a conformação de um mercado de entretenimento, em formação no Rio de Janeiro desde o quartel final do século XVIII, manifestas no decorrer das primeiras décadas do século XX na maior espetacularização dos eventos públicos, na popularização do cinema, no surgimento das emissoras de rádio, na melhor definição do que depois chamaríamos de forma imprecisa de música popular, no aperfeiçoamento de uma imprensa mundana. O futebol foi mais um desses fenômenos.


Ainda mais, não é possível compreender a popularização do futebol sem entender o desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro, o espraiamento do tecido citadino para os subúrbios, a melhoria relativa dos meios de transporte, a conformação de uma elite suburbana organizada em agremiações que, longe do mar, optavam por outros esportes. Quando observamos com acuidade essas ocorrências, vemos os limites das considerações de que o futebol foi da elite para o povo. Foi o povo que fez o futebol ser o que é, e a ideia de povo só se manifestou mais ampliada e intensamente nas décadas iniciais do século XX.


A propósito, volta e meia, leio que o futebol foi o primeiro esporte popular. Não foi. Antes dele, no início do século XX, o remo já o era. Lembremos também que, em 1890, havia no Rio de Janeiro cinco hipódromos funcionando simultaneamente, em geral, lotados (Melo, 2022). Podemos dizer que o ludopédio foi um dos primeiros em que a prática se tornou mais espraiada, e isso é um diferencial importante. Mas seguramente foi herdeiro da popularidade anterior de outras modalidades.


Tudo isso que argumento não tem nem um milímetro de tentativa de desmerecer a importância do futebol. De forma alguma. Trata-se apenas de ponderar que sem o considerar historicamente de forma mais apropriada, diminuímos nossa capacidade de reflexão sobre o tema, não usualmente recorrendo a ideias superficiais e verdades pouco sólidas, sustentadas mais no âmbito do discurso do que na comprovação empírica. Mais ainda, por essa carência de compreensão histórica mais aprofundada, corremos o risco de cair de forma incauta nos discursos da imprensa e mesmos nas narrativas clubistas sem a devida prospecção.


Talvez, então, valha a pena pensar um pouco nisso quando nos debruçamos sobre esse magnífico fenômeno: o futebol não inventou o mundo, é uma ocorrência histórica eivada de muitas peculiaridades, mas é bem mais ordinário do que alguns costumam considerar em seus estudos, alguns dos quais beiram um certo “ufanismo” com o tema. 


Referências:

MELO, V. A. de. Cidade sportiva. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Faperj, 2001.


MELO, V. A. de. Cidade divertida: entretenimentos no Rio de Janeiro do século XIX. 1. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2022.


Sobre o autor:

Victor Melo é Professor Titular da UFRJ.


Disclaimer:

As perspectivas presentes nos artigos veiculados no blog Bate-Pronto não necessariamente refletem as posições institucionais do INCT Futebol.


Como citar:

MELO, Victor. O futebol não inventou o mundo. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.2, n.10, 2025.


A formação de museus tem sido um esforço no universo do futebol para aprimorar o nosso conhecimento histórico sobre o tema. Se você se interessa pela história do futebol, poderá gostar do nosso artigo: Visibilidade e representação: a coleção de futebol feminino do Museu do Grêmio.


 
 
 

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