Alexandre Jackson Chan-Vianna
Pedro Henrique Lima Soares
A questão das desigualdades raciais está presente no debate público. Essa demanda mobiliza afetos e visões de mundo diferentes, que são captadas pelas mídias, fazendo a comunicação circular, se retroalimentando e construindo consensos mais ou menos hegemônicos na sociedade em cada tempo histórico. Contemporaneamente, o racismo tende a ser reprimido pelas leis, pelas políticas de reparação e pelas novas sensibilidades que se formam no mundo. No campo do esporte, em especial no futebol, pela sua relevância social e por combinar um desprendimento da vida ordinária com a potência da expressividade coletiva, as injúrias raciais ocorrem como uma espécie de válvula de escape desses sentimentos racistas, reprimidos no cotidiano, levando a consequentes críticas e punições a essas atitudes consideradas crime.
Considerando o esporte pela metáfora do teatro1, os atletas ocupam posição de ator principal. Apesar dos outros atores também se movimentarem na cena, são eles quem convergem a atenção para suas personas, representando os afetos da plateia que, por sua vez, constrói o debate público explorado pela mídia para conduzir essas interpretações. Nesse sentido, partimos do entendimento de que o atleta age baseado nessas interações. Como qualquer indivíduo, ele estabelece um projeto em nível individual. Ancorado nas avaliações que percebe da realidade, lida o tempo todo com a apresentação de si, as explorações e toda sorte de disposições em complexos processos de negociação que constituem a vida social. Longe da autonomia absoluta, ele toma decisões dentro de um campo de possibilidades, ou seja, uma combinação do seu potencial interpretativo do mundo simbólico com as condições em que se estabelece o processo sócio-histórico em que se encontra2.
Nesse sentido, o que esse ensaio pretende é afinar as lentes analíticas para observar o debate impresso nas mídias sobre o tema do racismo no mundo do futebol. Para isso, partiremos de um corte descritivo e sintético da carreira de quatro esportistas de envergadura mundial, dois brasileiros do futebol e, comparativamente, dois norte-americanos do basquete, que, em comum, tiveram suas opiniões sobre a questão racial capturadas e exploradas na mídia. Avaliaremos a circularidade da informação para tentar apresentar algumas considerações que contribuam para o debate. No percurso, convidamos à reflexão de nossos próprios engajamentos no debate público sobre o racismo.
Vinicius Junior e Neymar
Vinícius Junior, que tem origem na periferia da cidade do Rio de Janeiro, a cada ano que passa, vai ganhando corpo como personalidade midiática no universo do futebol. Jovem revelação do Flamengo, se profissionalizou em 2016, ainda com 16 anos, e, 4 anos depois, já era titular do Real Madrid, um dos times mais poderosos do mundo. No entanto, diferentemente de outras trajetórias similares, o jogador é retratado na mídia pela sua condição de pessoa negra. Se ele é um craque ou não, se conseguirá ser o novo líder da seleção brasileira, se jogaria mais bem centralizado ou pelas pontas, são temas que tratariam de seu talento para o futebol, mas é inegável que sua atitude, diante das seguidas injúrias raciais que sofreu, o tornou um símbolo da luta antirracista no futebol. Após atuação destacada com gol na final do título da Champions League 2024, por exemplo, se consagrava como favorito a receber o prêmio de melhor do mundo. No entanto, o destaque das reportagens ainda dividia seus méritos atléticos, suas jogadas, com seus estigmas originais de “Neguebinha”. O binômio performance-racismo chegou ao extremo, para os defensores do seu merecimento ao prêmio, no argumento de que, se perdesse, as desconfianças recairiam nas injustiças raciais4.
Na dimensão dos negócios, a imagem carismática e irreverente do atleta identificada com o público jovem atrai o interesse de grandes empresas, o que lhe rende contratos de publicidade tanto com produtos populares quanto de alto luxo. Ele representaria a jornada do herói, saindo de uma comunidade pobre, desacreditado, para brilhar como astro mundial. Em 2020, após uma análise de marca, o jogador adaptou seu nome – Vini Jr –, para universalizar a pronúncia, e criou uma logo pessoal com visão estratégica para o mercado asiático5. Na dimensão social, tem seu nome sempre lembrado como atuante na causa antirracista, levantando constantemente na mídia em geral ou nas redes sociais posições contra as injúrias raciais que sofre, cobrando das autoridades efetiva punição e se posicionando como porta-voz das minorias racializadas. Vini ainda concentra ações sociais como promotor de um instituto vinculado à causa da superação das desigualdades socioeconômicas. A ação principal do instituto é promover um aplicativo de internet com jogos educativos para incrementar a motivação de estudantes de escola pública para estudarem. Ação apoiada em parcerias do poder público com instituições privadas6.
Neymar e Vini Jr são brasileiros sudestinos, contemporâneos, com trajetórias de carreira similares e, portanto, num enquadramento histórico e contextual bastante próximo. No entanto, o primeiro apareceu para o grande público no Santos uma década antes, em 2010, aos 18 anos, tendo ali, como primeira resposta aos enfrentamentos do debate do racismo, a afirmação de que não poderia ter sofrido injúrias por não ser preto.
Uma década mais tarde, já com a carreira consagrada, jogando em times europeus de primeira linha e sempre em evidência para disputar o prêmio de melhor do mundo sem nunca ter ganhado, Neymar passou a se posicionar em relação ao tema. Em um dos fatos mais noticiados, em 2020, defendeu sua equipe e a do adversário por abandonarem o campo de uma partida da Champions League, após supostos comentários racistas de um funcionário, afirmando que o racismo “não tem lugar no futebol ou na vida”. No mesmo ano, também jogando na França, o brasileiro reclamou de ofensas racistas, dessa vez contra si, que teriam sido proferidas por um zagueiro espanhol. O contexto do fato era a sua expulsão por ter agredido esse adversário. Nas redes sociais, imediatamente declarou ser “negro, filho de negro, neto e bisneto de negro”, que “o racismo existe [...], mas temos que dar um basta” e que o “único arrependimento [...] é não ter dado na cara desse babaca”7. Os atos provocaram na mídia um apelo de redenção do atleta em relação à sua negação juvenil, com afirmações da chegada da maturidade e a vivência da questão racial no contexto europeu que lhe teria, em tese, dado maior consciência da causa. Vale lembrar, porém, que 2020 é o ano das intensas manifestações globais provocadas pelo caso George Floyd nos Estados Unidos, amplamente repercutidas na mídia, e também de grande questionamento do desempenho de Neymar que, então, estava às voltas com inúmeras lesões e problemas de relacionamento entre os companheiros de time.
Jordan e Lebron
Michael Jordan é o atleta mais icônico da era pós-Pelé. Não apenas é considerado o melhor jogador de basquete de todos os tempos, mas, sob sua dinastia nos anos de 1990, foi fulcral em transformar a NBA na mais bem sucedida liga de esporte profissional de dimensões globais de então. Jordan se consagrava como o atleta que reunia os predicados para atender ao modelo contemporâneo do esporte espetáculo em que a performance atlética, os números, as atitudes individuais deveriam convergir em imagens para o consumo de entretenimento popular na mídia televisiva8. Inevitavelmente, negro, naquela sociedade, Jordan não ficou imune aos questionamentos sobre se posicionar pela causa antirracista. No entanto, orientou toda sua carreira de atleta para não se pronunciar sobre o tema, o que foi visto à época como uma isenção conservadora e individualista ao priorizar seus interesses comerciais acima da causa racial. Uma repercussão argumentativa nesse debate era a suposta afirmação dele sobre não defender candidaturas antirracistas pois “republicanos9 também usam tênis”10.
Do outro lado, os agentes de marketing do atleta questionavam qual ação antirracista mais efetiva poderia haver do que conseguir ter pendurado o pôster de um negro no quarto de cada menino branco das classes médias conservadoras do país com o slogan “Like Mike”11. Para além do argumento da disputa e com distanciamento temporal, é possível refletir sobre os resultados da carreira e do legado dele se tivesse assumido a posição pública de defesa dos direitos civis. Em uma época muito mais conservadora, possivelmente, ele não teria tido o mesmo acesso às mídias que os atletas politicamente engajados após seu tempo dispuseram. De certo, teria muito mais dificuldades para se tornar um porta-voz dessa causa enquanto jogador, ao mesmo tempo que não teria sido capaz de construir o fabuloso capital financeiro e simbólico que lhe permitiu se tornar o primeiro negro dono de uma franquia e disputar os destinos da liga como parte da classe esportiva dominante.
Lebron James, igualmente negro, protagonista longevo da NBA desde os anos 2010, que alimenta os debates midiáticos rivalizando se seria ele o melhor de todos os tempos, tem tomado em sua carreira atitudes diferentes de Jordan. Em relação às demandas públicas sobre o racismo, o atleta é reconhecido ativista da causa e exemplo contrapondo a suposta isenção de atletas brasileiros notórios12. Na esteira de outros tantos atletas norte-americanos de diferentes modalidades desse período, o intitulado “King James” comumente se posiciona publicamente em eventos de comoção extrema, como nos casos Breonna Taylor e George Floyd. Depois desses pronunciamentos, não perdeu patrocinadores ou teve suas atitudes questionadas publicamente em uma escala que importunasse seu desempenho em quadra, pelo contrário, a liga, em 2020, patrocinou com ele o movimento “Black Lives Matter”13, o que, por óbvio, indica conformidade de agenciadores, patrocinadores e a mídia que exploram o espetáculo. Mas, assim como Neymar, Lebron James tem seu ativismo concentrado nos pronunciamentos em redes sociais e entrevistas.
A circularidade da informação
Optamos aqui por nos distanciarmos de julgamentos morais sobre as atitudes dos atletas. Seguimos o pressuposto de que cada um deles construiu a trajetória possível, equalizando uma negociação entre um projeto de vida imaginado com os constrangimentos sociais que enfrentaram na questão racial. Ocorre que, no calor do debate público ordinário, todos nós rotulamos esses atletas, dotando-os de predicados que nos agradam ou não, de acordo com nossos afetos e crenças combinados com as informações que dispomos. Essas expressões não se restringem às opiniões esportivas. Incluem temas como o racismo, que são prementes em nossa sociedade, de modo que não apenas torcemos pelos personagens esportivos, mas por incorporações, imagens, que moralmente nos empenhamos em enaltecer ou repudiar. A causalidade e o tempo são dois aspectos cruciais para analisar esse mecanismo complexo.
A causa do processo comunicativo não é exclusividade de um emissor. Atleta, público e mídia são responsáveis pela dinâmica comunicacional, dado que a recepção é também uma instância geradora de sentidos, de modo que essa prática está vinculada aos constrangimentos e contradições típicas de qualquer dinâmica social. Nessa triangulação dos atores, todos atuam como emissor e receptor. Assim, uma pauta precisa estar em consonância com os interesses do público e do atleta, não apenas do veículo de mídia, pois, só assim, existe o engajamento e se conclui a comunicação, inclusive do ponto de vista mercadológico para os financiadores do veículo. Os atletas fazem uma leitura dessa realidade, mediando aquilo que é possível ser feito combinado com o que se espera que eles façam. Alguns possuem até agentes e estrategistas que realizam essa leitura da conjuntura. O público, por sua vez, materializa no atleta aquilo que está em debate. Em outras palavras, uma notícia de jornal é o resultado do que se pretende transmitir e o que se espera ler, pois, cada receptor também impõe a pauta a ser consumida e dialoga com ela constantemente, exigindo do emissor da vez que equalize o conteúdo que vai comunicar. Assim, o consumo da mídia provoca e é provocado por múltiplos sentidos e entendimentos que os atores fazem de cada informação, alimentando a circularidade da prática comunicativa14. No entanto, se por um lado a mídia tem o poder de disseminar essa circularidade do debate, por outro, ela filtra os fatos e reduz a informação aos acontecimentos que engajam mais diretamente os afetos.
Essas notícias, em especial, quando impressas ou digitais, são um documento da história. Elas registram ao longo do tempo essas discussões colocadas em pauta na sociedade, permitindo analisar o contexto vinculado aos embates, fruto das relações sociais num dado momento histórico. Ocorre que essas impressões são um quadro que pode variar de interpretação conforme a época em que ele é revisto15. É nesse sentido que as atitudes dos atletas sobre o racismo podem possuir a mesma tela e moldura no retrato de um tempo, mas com diferentes tons e contornos em outro. Significa dizer que muita coisa pode ter mudado em relação ao enfrentamento do racismo e permitido que uma personalidade do esporte se veja compelido ou motivado a defender a causa antirracista, e a mídia disposta a repercutir isso, apesar de se manterem, em boa medida, as hierarquias sociais baseadas nas relações interraciais16. As distintas informações codificadas coletivamente no presente se misturam com os signos já consagrados pela cultura, e o processo da construção histórica da matéria jornalística se constitui num campo de disputa das representações sobre as pessoas, seus grupos e instituições. Trata-se, pois, da dinâmica concorrencial do comando do espaço público e da circulação dos bens culturais pela luta no campo discursivo. Evidentemente, com cotas de poder distintas entre esses concorrentes.
Detalhes e distâncias
Em tempos de uma sociedade em que a tecnologia da informação conecta as pessoas em tempo real e escala global, mas que cada vez mais é controlada por um grupo menor de pessoas, a mídia exerce um papel fulcral na circularidade do debate público. Nesse sentido, é inescapável que o racismo tanto mais se apresente em pauta quanto mais decorram os processos de sensibilização formados sobre as desigualdades nas relações raciais. Do mesmo modo, é inescapável que o universo do esporte, em especial escala o futebol, seja um palco privilegiado para que esse debate ganhe circularidade exponencial, demandando da mídia notícias diárias.
Contudo, o que também não pode nos escapar é a atenção para os detalhes e as distâncias dos fatos. Dos detalhes, nos aproximando de como cada um dos atores – jogadores, torcedores, dirigentes, agentes patrocinadores, donos das mídias – atuam num dado contexto sócio-histórico e, de acordo com o campo de possibilidades e as cotas de poder que cada um possui, como cada qual lança mão do seu discurso estratégico para manusear a causa antirracista. Da distância, por sua vez, nos afastando no tempo e no espaço, observando de longe e para o todo que resultados as ações efetivamente constituirão de forma mais consolidada.
Como plateia ativa desse teatro do cotidiano, é evidente que não conseguiremos ter todos os detalhes e nos distanciarmos de nossos afetos como torcedores e de nossas visões de mundo como agentes públicos no debate. Nos cabe, ao menos, sermos cuidadosos, reconhecendo como se imprimem as notícias e como o esporte se apresenta como veículo de retrocessos/progressos no processo civilizatório contra as desigualdades raciais.
1 Goffman, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
2 Velho, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
7 Ver: https://oglobo.globo.com/esportes/por-que-neymar-reagiu-pela-primeira-vez-apos-sofrer-racismo-24638797 8 David Halberstam. Michael Jordan: a história de um campeão e o mundo que ele criou. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2013.
9 O contexto da polêmica se deu pela disputa para o Senado em seu estado natal, quando o candidato democrata era negro e o republicano abertamente segregacionista.
10 Ver: https://slate.com/culture/2016/07/did-michael-jordan-really-say-republicans-buy-sneakers-too.html
11 Em interpretação livre, o sentido publicitário era utilizar o apelido comum dos homônimos do atleta junto com o desejo de comprar os produtos que ele divulgava. Ao mesmo tempo, convergia interesse de pais e filhos em enaltecer comportamentos dele, que representavam o ideal de sucesso naquela sociedade. Tudo isso estaria corporificado, de forma inédita e em grande escala, na imagem de uma pessoa negra.
12 Ver: https://brasil.elpais.com/esportes/2020-06-03/esporte-brasileiro-carece-de-um-lebron-james.html
14 Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
15 Pasquini, Adriana Salvaterra; Toledo, Cézar de Alencar Arnaut de. Historiografia da educação: a imprensa enquanto fonte de investigação. Interfaces Científicas – Educação, Aracaju. v. 2, n. 3, p. 257-267, jun. 2014.
16 Campos, Walter de Oliveira. Discriminação racial e imprensa no início dos anos 1950: um retrato da Lei Afonso Arinos em sua concepção e nascimento. Patrimônio e Memória, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 283-304, jan./jun. 2015.
SOBRE O AUTOR:
Alexandre Jackson Chan-Vianna é Professor Associado na UnB, atua na formação de professores-treinadores da educação física e do esporte, vinculado ao ProEF É autor de "Meninas que Jogam Bola" (Appris, 2021) e "Karate Kiokushin no Brasil" (CRV, 2021).
Pedro Henrique Lima Soares é bacharelado em Educação Física na UFRJ, atuou como estagiário em escolinha de futebol society sub-13 e é bolsista de iniciação científica do Programa PIBIC-UFRJ.
COMO CITAR:
CHAN-VIANNA, Alexandre. SOARES, Pedro. Impressões do racismo no futebol. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.16, 2024.
Impressões do racismo no futebol © 2024 by Alexandre Jackson Chan-Vianna. Pedro Henrique Lima Soares is licensed under CC BY-NC 4.0
Tema essencial e relevante que deveria estar na pauta de todos os veículos de comunicação. O debate sobre o racismo no esporte não pode mais ser negligenciado. Parabéns pelo texto e que venham mais como este!
Acho que o texto aborda claramente um assunto tabu no esporte e fundamental de ser observado e pautado. Espero ver outros textos como esse , onde se colocam “os pingos nos is” de forma direta , com foco num assunto da máxima importância: o racismo, que muitos já não suportam mais tanta injustiça em pleno 2024!