Maíra Tura Pereira
Para Bourdieu (2001), o significado das coisas está em constante disputa, e o que está em jogo é como escolhemos representá-las na nossa sociedade. Por isso, divergências acadêmicas são normais, e eu diria que são um tanto quanto necessárias para a evolução não só das ciências sociais, mas também de qualquer outra ciência. Quando nós colidimos contra o diferente, temos a possibilidade de reconsiderar nossos próprios paradigmas e repensar ideias. Porém, nem sempre uma crítica que se faça a um pensamento divergente tem o objetivo de ajudar no desenvolvimento dele. Na academia, nem sempre os pares estão em posição de igualdade, e eu não estou falando da relação professor-aluno. Gostaria me deter a relações de gênero e misoginia que ocorrem na academia entre pares que já possuem pós-graduação e que, muitas vezes, são levadas para baixo do tapete.
Desse modo, vou contar para vocês uma história, que não foi a primeira e, infelizmente, não será a última, em que uma mulher, no exercício do seu trabalho e em um ritual corriqueiro de sua atuação profissional, é desrespeitada por um homem pelo simples fato de ser mulher. Aqui, afirmo que é uma questão de gênero pois não é sobre uma simples divergência de conceitos ou posicionamentos acadêmicos: é sobre como “nem todo homem, mas sempre um homem” não aceita que mulheres produzam conhecimento sobre assuntos que homens já produziram, só que trazendo novas reflexões e, muitas vezes, desmoronando fortalezas que pareciam sólidas para eles.
Em novembro deste ano (2024), apresentei minha pesquisa na jornada discente do programa de pós-graduação do qual faço parte. Essa foi minha quarta apresentação do ano sobre essa mesma pesquisa. Após apresentá-la, ouvi as considerações que um debatedor tinha acerca dela. Estranhei as considerações dele, porque ele havia afirmado que pesquisas sobre gênero sempre acabam no mesmo lugar, que o futebol só produz homens e que é um espaço de sociabilidade só masculina. Além disso, ele falou que não entendia a importância de meninas jogarem só com meninas, que elas poderiam jogar com os meninos. Depois de ouvir tantas coisas em relação às quais eu tinha divergência de pensamento, preparei uma fala para realizar minha réplica.
Infelizmente, eu não consegui completar nem a primeira frase que eu havia preparado, que era: “Então... eu acho que o pensamento de que o futebol só produz homens é um pouco ultrapassado, já que há muitos anos o futebol também produz mulheres, e digo mais, a maior diversidade de mulheres possível.” Após esse início da minha fala, o debatedor me interrompeu e disse que eu estava mentindo. Eu tentei continuar meu raciocínio, e ele me interrompeu de novo, falando que eu estava mentindo e que eu sabia que isso era mentira, e continuou falando até que eu me calasse.
A coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) avisou ao debatedor que ele não poderia me interromper, já que esse era o decoro normal de um GT. Ela disse que iria restituir meu tempo e eu poderia começar minha fala de novo. Porém, eu não consegui. Eu fiquei incrédula e me senti humilhada para mais de 30 pessoas porque um pesquisador estava falando e levantando a voz para uma pesquisadora afirmando que ela estava mentindo. Ao invés de trazer contrapontos de uma forma acadêmica, um pesquisador preferiu interromper uma pesquisadora afirmando que ela estava mentindo. Consegue perceber que esse ocorrido não foi sobre discordâncias acadêmicas e sim sobre desrespeito? Ele me desrespeitou enquanto pesquisadora. Isso é misoginia.
A misoginia é o ódio ou o desprezo às mulheres. A misoginia pode se manifestar de várias maneiras, seja a exclusão social, ideias de privilégio masculino ou a depreciação e violência contra as mulheres. O debatedor daquele GT me depreciou em um dos rituais acadêmicos mais tradicionais que existem neste meio. Quando uma pessoa apresenta um trabalho, debatedores fazem considerações, e existe uma réplica. Antes de mim, ele fez considerações a trabalhos de dois homens que conseguiram concluir suas falas. O que o debatedor fez tem nome e é manterrupting, que é quando um homem interrompe constantemente uma mulher, de maneira desnecessária, não permitindo que ela consiga concluir sua frase. A palavra é uma junção de “man” (homem) e “interrupting” (interrupção) e, em tradução livre, quer dizer “homens que interrompem” 1.
Antes que você fale que esse caso foi isolado, converse com suas amigas pesquisadoras. Pergunte a elas se, alguma vez, elas foram interrompidas no meio da sua fala. Se algum homem já explicou a elas uma coisa que elas já sabiam. Se, em algum momento, elas produziram conhecimento, e quem levou o crédito foi um homem. Se a pesquisa dela já foi desmerecida quando ela mesma a apresentou, mas, quando um homem falou sobre ela, ele foi aplaudido. Se duvidaram da sua capacidade por ser mulher. Se já questionaram sua vestimenta – visto que não questionam homens que usam bermuda. Se elas já se consideraram impostoras acadêmicas por tanta insegurança que elas carregam, etc.
Então, convido-os a ler mulheres: Simone Guedes, Carmen Rial, Silvana Goellner, Ludmila Mourão, Mariana Martins, Leda Costa, Leila Salvini, Mariane Pisani, Caroline Almeida, Claudia Kessler e tantas outras que produzem conhecimento sobre futebol. Todas essas pesquisadoras são protagonistas na produção de conhecimento acerca do futebol de mulheres no Brasil em diferentes áreas do saber, como a Educação Física, a Antropologia, a Sociologia e a Comunicação. Muitas mulheres foram importantes neste percurso. Entre elas, vale ressaltar essas pesquisadoras de gerações diferentes que modificam as noções de poder e corpo no futebol e redesenham a história desse esporte pela perspectiva das mulheres – tanto de suas pesquisadoras quanto de suas protagonistas.
1. Disponível em: <O que é Manterrupting, Mansplaining, Bropriating, Gaslighting? - Jornal da Orla>. Acesso em: 10 de dez. 2024.
Referências:
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
Sobre a autora:
Maíra Tura Pereira é doutoranda em Antropologia na Universidade Federal Fluminense (UFF), integrando o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS). É mestre em Antropologia pela UFF e graduada em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Sobre a pesquisa:
A pesquisa de Maíra Tura Pereira foi apresentada pela autora no I Encontro INCT Estudos do Futebol Brasileiro, realizado em agosto de 2024, em Florianópolis. A apresentação contou com o título: “Do futebol de mulheres ao futebol de meninas: como as atletas localizam suas emoções?”, e com o seguinte resumo:
“Existe um universo de possibilidades, e muito já se pesquisou sobre o futebol de mulheres no Brasil. Porém, meu trabalho está localizado numa lacuna ainda não preenchida pelos estudos da antropologia dos esportes. Esta pesquisa trata da transição do estudo das emoções expressas pelas jogadoras de alto rendimento, estudadas no mestrado, para as novas interlocutoras do meu doutorado: as crianças que estão crescendo em categorias de base do futebol de mulheres. A pesquisa demonstra como as atletas manejam suas emoções e como se dá essa construção dentro e fora do campo. Ela também analisa como as questões de gênero ligadas ao esporte aparecem nesse contexto. O discurso das emoções das atletas sobre diferentes momentos e situações que rodeiam o ambiente esportivo foi essencial na construção dos dados. Como procedimento metodológico, já foi realizado um trabalho de campo nas categorias adultas do clube Fluminense, por 8 meses. Como continuidade, está sendo iniciado também um trabalho de campo no projeto social Daminhas da Bola, tanto nos treinos quanto em jogos. Acrescenta-se a isso a leitura e análise de capítulos de livros e artigos que tratam da questão da emoção, do esporte e do futebol de mulheres.”
Uma apresentação expandida da pesquisa pode ser lida aqui.
Como citar:
TURA, Maíra. Estudos do futebol, mulheres pesquisadoras e misoginia. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.37, 2024.
Estudos do futebol, mulheres pesquisadoras e misoginia © 2024 by TURA, Maíra. is licensed under CC BY-NC 4.0
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