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E as bets? Devemos proibir pobres do Bolsa Família de apostarem?

Carmen Rial


Até setembro de 2017, eu nunca tinha parado para pensar na importância das apostas esportivas. Muito menos no perigo delas. Isso aconteceu pela primeira vez em um jantar. Peço licença aos leitores e leitoras para contar essa história usando um “nariz de cera”1, como dizem os(as) jornalistas. Ela aconteceu em setembro de 2017, quando eu estava em Atenas participando de um evento organizado por um grupo de historiadores de futebol da Harvard University2. O evento foi patrocinado pelo dono do Olympiacos, um dos maiores times de futebol da Grécia3. Tudo muito chique. Limosine nos levando do aeroporto a um hotel cinco estrelas – viajei no carro com o sociólogo Richard Giulianotti4, conversando sobre futebol e o nordeste brasileiro, que ele conhecia bem. Sala para as apresentações no interior do estádio com um café que tinha mais opções que o Starbucks. Ônibus para tours na cidade e visita guiada ao Parthenon e ao Museu Arqueológico – que havia sido inaugurado há pouco tempo e foi fechado para que o visitássemos sem a massa de turistas.


O irônico é que eu tinha feito pesquisa de campo em Atenas uns cinco anos antes. Na época, fui ao mesmo estádio do Olympiacos sem ter tido meu acesso liberado para visitá-lo ou fazer qualquer entrevista – ainda assim, subi no elevador e percorri os corredores luxuosos que dão para os camarotes, antes de um vigia vir me caçar5. E agora, éramos recebidos com tapete vermelho. Minha apresentação foi assistida por ninguém menos que dois futebolistas campeões mundiais: Karembeu e Lilian Thuram.


Na última noite, fui a um evento de coquetel e jantar na cobertura do Museu, com os convidados em traje de gala e vista para o Parthenon iluminado. Entre um salgadinho e outro, conversei animadamente com um senhor que me pareceu muito simpático. Depois, ele foi chamado a discursar para abrir o jantar, antes do desfile de garçons e bandejas. Foi então que descobri que ele era ninguém menos que John Boehner, um ex-presidente do congresso (the Speaker of the House) dos Estados Unidos! No jantar, se pudesse escolher, eu teria sentado ao lado de um(a) dos(as) colegas dos diversos países presentes. Ou com Karembeu, com quem tinha passado bons momentos durante os dias do Colóquio – ele apaixonado pelo Brasil. Mas, claro, jantares assim têm lugares marcados nas mesas. E acabei sentada entre dois desconhecidos, o que, às vezes – e foi o caso – pode ser muito mais produtivo para quem pesquisa. Já tinha aprendido muito no trajeto ao Parthenon por ter sentado, ao acaso, ao lado de um advogado que estava negociando a compra de um clube da Primeira Liga Inglesa para o dono do Olympiacos – mas isso é tema para outro momento.


Conversa vai, conversa vem na mesa de jantar, e acabei descobrindo que um dos meus colegas próximos, um jovem pai, era, na verdade, um dos maiores patrocinadores do clube e proprietário de uma casa de apostas. Como antropóloga que sou, fui fazendo perguntas, e ele me explicou em detalhes como funcionava uma bet. Ele também contou sobre a sua história de vida: um simples programador empregado por uma bet que se deu conta de quanto era lucrativo o setor e resolver abrir a sua própria “empresa”. 


Não esqueço a resposta que me ele deu quando lhe perguntei qual era o maior problema que ele enfrentava – já que ele só falava coisas boas sobre o negócio. Como em todas as perguntas, eu tinha respostas hipotéticas: dificuldades com a internet, a rotatividade de empregados (já que ele mesmo tinha saído de uma firma), falhas no sistema. Mas o que ele disse foi completamente inesperado, e eu nunca esqueci: “O maior problema? São os viciados em jogos”. Ora, como qualquer corporação capitalista, a dele deveria querer fidelizar clientes, deveria considerar uma boa ter pessoas que usassem a empresa o máximo possível. E, no entanto, ele estava apontando isso como um problema. Os viciados em jogos eram quem se endividava para jogar. Os que perdiam casas, automóveis, faziam empréstimos em bancos, arruinavam-se apostando em possíveis vencedores de jogos, em esperados cartões amarelos, em improváveis pênaltis ou num número de escanteios que só sua imaginação vislumbrava.


Talvez isso fosse um problema por conta de sua consciência pesada por ser responsável por tanta desgraça, pois até os capitalistas mais obstinados em obter lucro devem ter uma. Não descarto isso. Mas certamente os processos judiciais que tinha que enfrentar por conta desses “viciados em jogos” importavam muito. De qualquer modo, eu que sou do tempo dos cartões perfurados de uma loteria esportiva promovida pela Caixa Econômica Federal e até já apostei nela – poucas vezes, é verdade –, desde essa noite passei a olhar com muita desconfiança para os sites de jogos. 


Voltando para o presente, tem sido um choque ver a rápida ascensão das bets no Brasil, país onde cassinos são proibidos, e o “jogo do bicho” sempre foi clandestino – ainda que considerado uma das poucas coisas sérias e confiáveis no país6. As bets entraram sem a poesia da nominação totêmica dos animais associados aos números, sem “o universo onírico como parte de uma loteria popular que destemidamente reintegrava o ‘primitivo’ e o mágico com o racional e o utilitário” (DaMatta; Soárez, 1999, p. 31). Vieram vestidas de modernidade, com nome em inglês. Muitas delas transnacionais e com sede em outros países. Associadas a aplicativos (os ditos “apps”), requerendo que o usuário tenha celular ou computador e domine o sistema de apostas. Ou seja, tudo muito diferente do brasileiríssimo jogo do bicho, em que se apostava na banca da esquina ou da antiquada Loteria Esportiva. 


As apostas esportivas entraram pela porta dos fundos, nos últimos dias do governo do golpista Michel Temer7, e não foram regulamentadas, como o previsto no decreto assinado por ele, durante o desgoverno do inominável. Entraram como um tsunami lento, e hoje já são 520 registradas e mais 56 que operam no Brasil sem registro, na semilegalidade8, numa farra que tem data para acabar: outubro de 2024. 


O governo e o congresso se apressam para chegar a uma lei que resolva os problemas todos que as bets trouxeram, entre eles, o apontado pelo meu companheiro de mesa na cobertura do Museu Arqueológico de Atenas, o de como impedir que os viciados no jogo joguem. 


Países que convivem com as bets há mais tempo, como a Inglaterra, sabem que esse é um problema público grave, pois impacta o sistema de saúde pública ao afetar milhares. Um relatório produzido pelo National Centre for Social Ressarce e pela University of Glasgow descobriu que 2,5% dos adultos britânicos enfrentaram problema com jogos, oito vezes mais do que se pensava anteriormente. Mas a taxa estimada de “problem gambling” foi de 4,1% para aqueles que jogaram durante o último ano9. E há jogos piores ainda do que os esportivos. A pesquisa mostrou que 24,5% dos entrevistados que jogaram em caça-níqueis online no ano passado tiveram sinais de vício (“problem gambling”), quase seis vezes mais alto do que a taxa de todos aqueles que jogaram no mesmo período.


E no Brasil?


As pesquisas do Banco Central (BC)10 e do Datafolha divulgadas nesta semana acrescentaram mais dados e abrem uma polêmica. A do Datafolha mostrou que 15% da população brasileira apostaram pelo menos uma vez no último ano. E que as pessoas gastam 20% do salário-mínimo em apostas. 


A pesquisa do BC, que respondeu a uma demanda do senador Omar Aziz (PSD-AM) foi além:  analisando as transferências por Pix, o BC concluiu que entre 18 a 21 bilhões são investidos mensalmente por brasileiros em apostas esportivas. O BC identificou 24 milhões de apostadores, os tais 15% da população, mas o que chamou a atenção e mereceu as manchetes (e uma suposta “irritação” de Lula) foi o fato de que 5 milhões entre os apostadores são beneficiários do Bolsa Família, sejam eles titulares ou familiares11.


 Apenas no mês de agosto, 3 bilhões de reais do Bolsa Família (BF) teriam sido usados para apostas em bets. Ou seja, um quinto dos recursos destinados mensalmente pelo governo ao programa está sendo usado para apostas e não para cobrir as despesas básicas das familias situadas abaixo da linha de pobreza. Se as pesquisas forem confiáveis, parte dos nossos impostos estariam enriquecendo os donos das empresas de bet, aqui e no exterior. 


Flávia Oliveira, jornalista do Grupo Globo, interpelou a pesquisa indicando que o valor do Bolsa Família é, em média, R$ 684,27. Se foram 3 bilhões gastos em bets, isso dá 600 reais por pessoa que recebe o BF, ou seja, ou todos os recebedores do BF jogaram ou pode ter havido apropriação de CPFs para “lavar” dinheiro.


[...] não dá para cravar, até aqui, se foram eles mesmos que jogaram ou se seus CPFs foram usados por criminosos em operações indevidas para lavagem de dinheiro. Não é incomum ver dados de beneficiários de programas sociais em registros de imóveis, empresas e até doações eleitorais. Muitas vezes, sem que eles saibam. É importante que não sejam estigmatizados, criminalizados ou prejudicados por ser vítimas de vício ou do crime. (Oliveira, 2024)

Lavagem de dinheiro não é privilégio apenas das bets. Lembro bem do escândalo dos congressistas (entre outros) que, na época de ouro da Loteria Esportiva, compravam apostas ganhadoras como meio de “lavar” dinheiro de corrupção.


O tema é realmente sério. Devemos nos questionar – e espero que pesquisas etnográficas sejam realizadas em breve – qual o impacto dessas apostas para as camadas mais pobres da população. E qual o seu significado. Será que o fato de muitos brasileiros se considerarem especialistas em futebol está jogando contra eles? Estaria uma parte importante desses apostadores (22%) vendo as apostas esportivas como forma de investimento, como mostra outra pesquisa, a da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima)? Seriam, de fato, as maiores motivações para as apostas: ganhar dinheiro rápido em um momento de necessidade (40%); ganhar uma grande quantia de uma vez (39%); e só por último a diversão (26%)12?  


O que fazer – como já diria o conhecido líder bolchevista? 


As bets representam hoje uma mina de ouro para os cofres públicos – com os bilhões arrecadados com os impostos vindos dos jogos –, para as empresas jornalísticas, para a CBF – que nomeou nosso principal campeonato com o nome de uma delas –, e para os próprios clubes – que as têm como patrocinador master. 


Sem proibir, a regulamentação por parte do Estado se faz urgente. A Inglaterra pode servir de inspiração – como já serviu quando criamos o Sistema Único de Saúde, o PHE servindo de modelo para o nosso ISSN. Ela deve levar em conta dimensões econômicas, sociais e de saúde. Uma regulamentação que não pode ser tuteladora dos mais pobres, das camadas baixas economicamente. 


O Estado não pode dizer onde os favorecidos pelo BF devem gastar o seu dinheiro – algo parecido foi tematizado quando se instaurou o programa e se discutiu se o cartão deveria poder ser usado apenas para a aquisição de alimentos. Decidiu-se acertadamente que os recursos poderiam ser usado onde fossem mais necessários. O que não significa que não devemos ligar o sinal de alerta, pois é muito grave que uma parcela significativa dos recursos da BF estejam sendo usada em apostas esportivas. 


A regulamentação governamental deveria mirar na oferta. Impedir que as 56 empresas atualmente atuando fora do controle do BC e que movimentaram a maior fatia dos bilhões arrecadados continuem operando. Deveria visar também a publicidade, até agora sem nenhum controle, com os nossos ídolos futebolistas incentivando o jogo sem passar as informações do perigo desses. Deveria alertar dos perigos do vício do jogo, o que não fazem grande parte dos jornalistas esportivos de múltiplas empresas, que aceitam o dinheiro que vem de bets sem nenhum pudor. E deve, especialmente, colocar em ação mecanismos de prevenção à lavagem de dinheiro.


Não se trata de proibir, mas de agregar informações13, como quando se passou a obrigar a difundir imagens tenebrosas nas carteira de cigarro, que podem não ter resolvido o problema do tabagismo, mas provavelmente levou alguns a pensarem duas vezes antes de começar a fumar.


 

Notas:


 1 Nariz de cera, no jornalismo, é um trecho de introdução que não entra diretamente no assunto do texto.


2 O evento “Reinforcing, crossing, and transcending borders: soccer in a globalized world”, ocorreu em Atenas (Grécia), nos dias 4 e 5 de setembro de 2017.


3  O dono do Olympiacos era um dos mais ricos armadores gregos, ficava atrás apenas do Onassis.


4 Richard Giulianotti, sociólogo, é professor na Loughborough University, Reino Unido. Integra o Conselho Internacional do INCT Futebol.


5 É verdade que me foi indicado o escritório do clube, onde eu poderia ir para ter a autorização para os contatos, mas não deu tempo de ir lá. Em compensação, fui ao escritório do rival, o Panathinaikos, onde pude entrevistar os quatro futebolistas brasileiros que atuavam lá, visitando o centro de treinamento, secretários, tradutores, e até ter acesso a contratos (Rial  2015).



7Segue a cronologia desse processo, segundo Estudio I (2024):

  • 12 de dezembro de 2018: Temer sanciona a lei de apostas esportivas com cota fixa (o apostador sabe de antemão quanto receberá se vencer a aposta) prescrevendo sua regulamentação em até 4 anos.

  • Março de 2022: Ministério da Economia envia decreto para a Casa Civil com a regulamentação.

  • Dezembro de 2022: o prazo se encerra e o inominável não assina o decreto.

  • 11 de maio de 2023: Lula envia ao congresso decreto com a regulamentação. Prevê sede no Brasil e o pagamento de 30 milhões de reais para operar.

  • 22 de dezembro de 2023: Câmara aprova a regulamentação do governo.

  • 29 de dezembro de 2023: Lula sanciona a regulamentação das apostas

  • 23 de fevereiro de 2024: Fazenda publica primeira  (já são 19) portarias que regulamenta as apostas 

  • 1 de outubro de 2024: Prazo limite para as empresas se cadastrarem

  • 1 de janeiro de 2025: Regulamentação passa a valer para no Brasil.


8 E são essas que abocanham a fatia maior das apostas, como afirma Oliveira (2024): “Este último grupo [o das empresas operando sem CNPJ] recebeu, apenas em agosto, R$ 20,8 bilhões, mais de dez vezes o valor arrecadado pelas loterias (R$ 1,9 bilhões) e quase 70 vezes o volume de Pix das empresas de jogos e apostas corretamente classificadas (R$ 300 milhões)”


9Nos últimos anos, a preocupação com os danos associados ao jogo tem aumentado e, em março de 2018, o Public Health England (PHE), o INSS da Inglaterra, confirmou em documento como uma das prioridades do PHE os jogos e a necessidade de que “informasse e apoiasse ações sobre danos relacionados ao jogo como parte do acompanhamento da revisão de máquinas de jogos e responsabilidade social liderada pelo Departamento de Digital, Cultura, Mídia e Esporte”. Disponível em: <https://www.gov.uk/government/publications/gambling-related-harms-evidence-review/gambling-related-harms-evidence-review-summary--2>. Acesso em: 29 de set. 2024.


10 Não consegui acesso direto ao relatório do BC, por isso, tive que usar fontes secundárias.


11 Outras pesquisas são ainda mais eloquentes: “Um levantamento produzido pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) indica que as bets, como ficaram conhecidas as plataformas virtuais de apostas esportivas, podem gerar um prejuízo anual de R$ 117 bilhões aos estabelecimentos comerciais do país.  Os resultados do estudo, divulgados na última semana, mostram ainda que, entre junho de 2023 e junho de 2024, os brasileiros gastaram R$ 68 bilhões em apostas nas bets. O montante representa 0,62% do Produto Interno Bruto (PIB) do país e 0,95% do consumo total no período” (Rodrigues 2024).



13Outros têm se pronunciado assim, como é o caso de Schwartsman (2024).


 

Referências:


DAMATTA, Roberto; SOÁREZ, Elena. Águias, burros e borboletas: um estudo antropológico do jogo do bicho. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

ESTUDIO I, Globonews, 27 de set. 2024.

OLIVEIRA, Flávia.  Epidemia das bets não pode ser usada para demonizar Bolsa Família. O Globo, 27 de set. 2024. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/opiniao/flavia-oliveira/coluna/2024/09/epidemia-das-bets-nao-pode-ser-usada-para-demonizar-bolsa-familia.ghtml>. Acesso em: 29 de set. 2024.

RIAL, Carmen. Circulation, bubbles, returns: the mobility of Brazilians in the football system. In: ELLIOT, Richard; HARRIS, John (Orgs.). Football and migration. Lonndres e Nova York, 2015. p. 61-75.

RODRIGUES, Leo. Estudo da CNC aponta que bets causam prejuízo bilionário ao comércio. AgenciaBrasil. 28 de set. 2024. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2024-09/estudo-da-cnc-aponta-que-bets-causam-prejuizo-bilionario-ao-comercio>. Acesso em: 29 de set. 2024.

SCHWARTSMAN, Hélio. Aposta errada. Folha de São Paulo, 25 de set. 2024. 

WAGNER, Carlos. Jogador compulsivo é questão da saúde pública. Função do governo é regular os jogos online. (em italico:) Blog Histórias Mal Contadas, 1 de outubro de 2024.


 

Sobre a autora:

Carmen Rial: Professora Doutora da Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenadora do INCT Futebol.


 

Como citar iste texto:

RIAL, Carmen. E as bets? Devemos proibir pobres do Bolsa Família de apostarem? Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.19, 2024.


 
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