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Do futebol de mulheres ao futebol de meninas

Maíra Tura Pereira


No meu mestrado, pesquisei o discurso sobre as emoções de atletas de alto rendimento do futebol de mulheres. O ambiente do alto rendimento esportivo ainda não é um espaço que dialoga bem com as emoções e, muitas vezes, estas são anuladas, repudiadas e subaproveitadas. Em geral, nos esportes, quando se expressa o que, no senso comum, se entende por emoção, está se demonstrando fragilidade. Mas, na minha atual pesquisa de doutorado, busco identificar a dualidade das emoções, tanto o lado negativo quanto a positividade delas, que pode levar a resultados expressivos de elevado desempenho. Durante a pesquisa, pude ter contato com dois termos emocionais nativos, o “migué” e o “emocional”, que serão explicados mais adiante.


Em 2019, com a obrigatoriedade da categoria feminina em clubes de série A e B do futebol de homens, nasceu uma nova era do futebol de mulheres. Acompanhei as Guerreiras do Fluzão 1por 8 meses, entre setembro de 2022 e abril de 2023, em Xerém, no município de Duque de Caxias, onde fica localizado o Centro de Treinamento Vale das Laranjeiras (CTVL), que comporta tanto as categorias de base masculina e feminina quanto a equipe profissional de mulheres do Fluminense Futebol Clube (FFC). Elas possuíam diversas atividades realizadas de segunda-feira a sábado, no horário das 7h às 12h, no ano de 2022, e das 7h às 12h e 16h às 18h, em 2023.


Já a minha pesquisa de doutorado trata do sonho de muitas meninas que são esquecidas quando o assunto é futebol. Na verdade, mais do que esquecidas, elas têm seu sonho negligenciado. Em continuação ao que vinha sendo construído no mestrado, as emoções permaneceram como o tema principal de minha investigação. Porém, agora, a pesquisa não tem a interlocução do alto rendimento do futebol de mulheres. A nova empreitada está acontecendo com o futebol de meninas, e as estrelas desse espetáculo serão as crianças e pré-adolescentes que estão crescendo dentro desse ambiente esportivo, nas categorias de base 2. Com o objetivo de caminhar em trilhas fechadas (Rojo, 2015) e, ao mesmo tempo, continuar pesquisando as emoções no futebol de mulheres, veio a ideia de pesquisar com crianças, que é um desafio que foi pouco explorado pela antropologia dos esportes e pela antropologia das emoções no Brasil.


Como procedimento metodológico, já foi realizado um trabalho de campo no clube Fluminense nas categorias adultas por 8 meses, e está sendo iniciado um trabalho de campo no projeto social Daminhas da Bola, tanto nos treinos quanto em jogos. A esse processo, acrescenta-se a leitura e análise de capítulos de livros e artigos que tratam da questão da emoção, do esporte e do futebol de mulheres. No trabalho de campo realizado no Fluminense, passei por um dilema de definição de um par de termos nativos, o “migué” e o “emocional”, que dialoga com a forma como as atletas localizam as suas emoções e as das suas companheiras de equipe. “Emocional” é um termo nativo amplamente utilizado pelas atletas do Fluminense, que abarca todos os sentimentos e emoções que são da vida pessoal delas e podem interferir no desempenho dos treinos e jogos, ou sobre emoções que são criadas no ambiente esportivo. O emocional seriam todas as emoções expressas e validadas por quem as observa. Já o “migué” seriam todas as emoções expressas que não são validadas por quem observa.


Elas constroem uma relação de oposição ou de semelhança entre o emocional e o migué, dependendo se validam ou não a emoção que a sua companheira expressa. Desse modo, minhas interlocutoras só falavam sobre migué quando não validavam as emoções e comportamentos expressos por suas companheiras de equipe. Porém, um ponto importante para elas é que a palavra migué só é expressa entre elas e a comissão, nunca quando a equipe masculina está presente ou quando tem pais por perto. Além disso, o migue está normalmente associado a outra pessoa, assim, não é comum para elas assumirem para si que estão “dando migué”. O migué, para elas, pode ser usado em várias situações: para o “corpo mole” nos treinos, o medo de diferentes situações dentro e fora das quatro linhas, as inseguranças em relação à performance em campo, a preguiça da rotina desgastante e a “falta de vontade” nos jogos.


Como escolha teórica no doutorado, utilizarei o termo “futebol de meninas” para me referenciar às categorias de base do futebol de mulheres e, com isso, pretendo ampliar o conceito já utilizado por diversas pesquisadoras que se debruçaram sobre o assunto. A maioria das pesquisas sobre mulheres que praticam futebol permeia mais as vivências, diálogos e interlocuções com as jogadoras, treinadoras e torcedoras adultas ou adolescentes. Já no meu estudo, as principais interlocutoras da pesquisa são as crianças, por isso, acredito que o fato de elas serem crianças é um marcador importante para realizar essa diferenciação. A percepção utilizada neste estudo para “criança” é o parâmetro aplicado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que, segundo o Art. 2º da Lei 8.069/90 (ECA), considera criança a pessoa de até doze anos de idade incompletos 3.


Além disso, “futebol de meninas” é mais autoexplicativo do que “categorias de base” e possui um paralelo mais claro com o futebol de mulheres. Meu objetivo não é causar um antagonismo entre o futebol praticado por adultas e por crianças, mas sim mostrar que o futebol de meninas seria um processo de construção das crianças para o futebol de mulheres. Por outro lado, existem várias nomenclaturas para os mais diversos futebóis que não são o futebol de homens, como o futebol indígena, o futebol trans, o futebol de cegos, etc. Isso mostra que as pessoas precisam de mais termos para se identificar com o futebol, e o futebol de meninas é a minha escolha analítica para identificar as crianças neste universo de possibilidades, dentro deste esporte tão diverso.


As atletas do futebol de mulheres e do futebol de meninas localizam suas emoções de forma diferente. Enquanto as adultas expressam suas emoções dependendo de quem está as observando, as crianças ainda não sentem que precisam mudar o jeito que expressam suas emoções dependendo de quem as observa. Diversos motivos podem ser encontrados para essa diferença no discurso das emoções das interlocutoras nos dois trabalhos de campo. Porém, uma coisa elas possuem em comum: segundo Lutz (1990), o discurso sobre emoções é também um discurso sobre gênero, e a natureza socialmente construída pelo Ocidente das categorias emocionais é associada ao feminino. Por isso, elas são utilizadas para definir mulheres que seriam subordinadas, já que a expressão das emoções seria algo perigoso. Então, o controle e o gerenciamento das emoções estão ligados ao poder da dominação masculina sobre as pessoas mais fracas, irracionais, emotivas e perigosas: as mulheres e as crianças.


1. “Guerreiras” é como todas as atletas do Fluminense são chamadas pela comissão técnica e torcida.

2. As categorias de base são divididas por idade, como uma espécie de etapas num processo de formação de um determinado esporte. Durante esse processo, as crianças desenvolvem suas habilidades físicas, táticas e técnicas conforme seu nível de maturidade. Mais informações em: <https://foothub.com.br/categoria-de-base-o-que-voce-precisa-saber-para-comecar/>. Acesso em: 11 de jan. 2024.





Referências:

LUTZ, Catherine. Engendered emotions: gender, power, and the rhetoric of emotional control in American discourse. In: LUTZ, Catherine; ABU-LUGHOD, Lila (Ed.). Language and the politics of emotion. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.


ROJO, Luiz Fernando. Caminhando através de trilhas fechadas: reflexão sobre objetos nunca ou quase nunca estudados na antropologia brasileira. Análise Social, v. 217, n. 1, p. 766-782, 2015.


Sobre a autora:

Maíra Tura Pereira é doutoranda em Antropologia na Universidade Federal Fluminense (UFF), integrando o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS). É mestre em Antropologia pela UFF e graduada em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Este texto é uma adaptação da apresentação realizada pela autora no I Encontro INCT Estudos do Futebol Brasileiro, realizado de 5 a 7 de agosto de 2024, em Florianópolis.


Como citar:

TURA, Maíra. Do futebol de mulheres ao futebol de meninas. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.36, 2024.


Do futebol de mulheres ao futebol de meninas © 2024 by TURA, Maíra. is licensed under CC BY-NC 4.0


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