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Do campo às arquibancadas: desafiando a cultura do estupro

Marcos Vinícius Ferreira Corrêa


A cultura do estupro no contexto do futebol brasileiro configura-se como uma problemática tanto persistente quanto negligenciada. Embora o futebol seja exaltado como a paixão nacional e uma força unificadora, esse ambiente também pode ser hostil e perigoso para as mulheres. A violência sexual possui raízes profundas na cultura patriarcal, sendo reiterada em diversas esferas sociais, e o futebol não escapa a essa realidade. Os estádios de futebol, frequentemente vistos como altares de celebração esportiva, muitas vezes escondem sob sua superfície uma cultura de violência e assédio sexual que tem profundas repercussões sociais e psicológicas. É crucial entender como esses ambientes, onde a masculinidade hegemonicamente agressiva é glorificada, perpetuam uma dinâmica de poder que marginaliza e vitimiza as mulheres.


Importante salientar que essa cultura de estupro está presente na sociedade de maneira geral. Ela nasce fora do futebol, se expande e se perpetua nas esferas esportivas. Nesse ínterim de estudo em questão, no contexto do futebol, quando essa violência chega ao “campo”, há uma proteção presente e de maneira profundamente ampliada. Primeiro, na perspectiva da torcida, que visualiza o seu ídolo de time e o desempenho profissional, que não se mistura com a vida privada. Também dos próprios jogadores, técnicos e clubes, que, cumulados com o poder midiático e a ascensão financeira, tornam o ambiente blindado e protegido.


O futebol, enquanto esporte e fenômeno cultural, ocupa um espaço central no imaginário brasileiro, simbolizando unidade nacional, paixão coletiva e até uma forma de identidade. No entanto, esse mesmo cenário de euforia e celebração mascara a misoginia que muitos torcedores e organizadores manifestam. A estrutura hierárquica e as normas de gênero presentes nos times, nas torcidas organizadas e nos próprios estádios reforçam comportamentos violentos contra as mulheres.


Reportagens como a de Júlio Bittencourt (2020), na Revista Fórum, revelam diálogos incriminatórios envolvendo jogadores de futebol envolvidos em casos de estupro, fornecendo um olhar detalhado sobre casos específicos que ilustram a problemática. Dados do Atlas da Violência (2018) indicam uma prevalência alarmante de violência sexual, exacerbada pela negligência das autoridades esportivas e policiais. A grande maioria dos perpetradores não enfrenta consequências legais, o que perpetua a sensação de insegurança entre as vítimas. Uma reportagem da Metrópoles (2017) destaca que 99% dos crimes de estupro no Brasil permanecem impunes, ilustrando a dimensão do problema. No contexto dos estádios, a vulnerabilidade das mulheres é exacerbada pela presença masculina dominante e pela conivência de torcedores e organizadores de eventos.


A cultura do estupro está profundamente enraizada nas dinâmicas de poder e nas construções de gênero presentes no contexto do futebol. Goellner (2021) e Sanday (1997) evidenciam que as dinâmicas de poder e gênero favorecem a perpetuação da violência, enquanto Sousa (2017) discute como essas práticas são rotineiramente normalizadas no Brasil. A masculinidade tóxica e a conivência das estruturas sociais e organizacionais reforçam comportamentos violentos e misóginos. A identificação de casos específicos, como o descrito por Bittencourt (2020), contribui para a compreensão de como a cultura do estupro se manifesta e é acobertada dentro do ambiente esportivo.


Tais conclusões são corroboradas por entrevistas com vítimas que relataram episódios de assédio e violência sexual nos estádios, frequentemente desconsiderados ou minimizados pelas autoridades e pelos próprios clubes. Essas narrativas reforçam a necessidade de transformação nas políticas e práticas que governam o futebol e a sociedade em geral. Desmascarar e combater a cultura do estupro nos estádios de futebol brasileiro é um passo crucial para garantir um ambiente seguro e inclusivo. Reforça-se a necessidade de ações mais rigorosas e conscientes, desde políticas de prevenção até a punição efetiva dos agressores. A luta das mulheres por reconhecimento e respeito no esporte deve ser abraçada por todos, promovendo uma verdadeira transformação sociocultural.


A resistência e resiliência das mulheres no esporte devem ser reconhecidas e fortalecidas, visando à construção de um ambiente seguro e inclusivo para todos. Estudos como o de Campos et al. (2017) sugerem que a implementação de programas educacionais, campanhas de conscientização e treinamentos específicos para torcedores e autoridades esportivas podem ter um impacto significativo na redução da violência sexual. A urgência de iniciativas educacionais é evidente, pois elas abordam a cultura do estupro em sua raiz, incentivando uma mudança de atitude dentro e fora dos estádios.


Além disso, políticas públicas mais rigorosas e efetivas são indispensáveis. A responsabilização de agressores e a criação de canais de denúncia seguros e efetivos para as vítimas são passos essenciais para deter a perpetuação dessa cultura. É fundamental promover uma reestruturação das normas sociais e esportivas que atualmente legitimam e silenciam a violência. A colaboração entre entidades esportivas, governo, ONGs e a sociedade civil pode criar um compromisso coletivo em favor de um ambiente seguro e inclusivo.


Esse compromisso também deve incluir a formação continuada de profissionais que atuam no esporte e a revisão das políticas internas dos clubes, garantindo que ações discriminatórias e violentas sejam adequadamente punidas. Programas de apoio psicológico para vítimas também são vitais para ajudar na superação do trauma e na reintegração social. Finalmente, é crucial reconhecer e valorizar o papel das mulheres que atuam no futebol, inclusive jornalistas, jogadoras e torcedoras, que frequentemente desafiam a cultura do machismo e da violência dentro desses espaços. Sua resistência e determinação são exemplos poderosos de mudança e devem ser vistos como inspirações para todos que buscam um ambiente esportivo mais justo e seguro.


É preciso chamar a atenção para a urgência de iniciativas educacionais e campanhas de conscientização que abordem a cultura do estupro, incentivando uma mudança de atitude dentro e fora dos estádios. O impacto potencial dessas campanhas é vasto, fornecendo não apenas um ambiente mais seguro para as mulheres, mas também incentivando uma cultura esportiva de respeito e igualdade. É imperativo que a sociedade como um todo se mobilize para desmantelar as estruturas que sustentam a violência sexual, transformando não apenas o futebol, mas todas as esferas em que essa problemática está presente.


Ao iluminar a gravidade da cultura do estupro no futebol brasileiro e ao destacar a necessidade de intervenção multifacetada, podemos fomentar um diálogo necessário e urgente. Somente através de esforços coletivos e sustentados podemos aspirar a um futuro em que o futebol seja, de fato, um esporte para todas e todos, livre de violência e discriminação.


Referências

ATLAS DA VIOLÊNCIA. Ipea/FBSP. 2018. Disponível em: <https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/estupros-no-brasil/>. Acesso em: 24 de mai. 2024.

BITTENCOUT, Júlio. Diálogos que confirmam Robinho como estuprador explodem nas redes. Revista Fórum, 16 de out. 2020. Disponível em: <https://revistaforum.com.br/noticias/dialogos-que-confirmam-robinho-como-estuprador-explodem-nas-redes/>. Acesso em: 24 de mai. 2024. 

CAMPOS, Carmen Hein et al. Cultura do estupro ou cultura antiestupro?. Revista Direito GV, v. 13, p. 981-1006, 2017.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: descontinuidades, resistências e resiliências. Revista Movimento, v. 27, 2021.

METRÓPOLIS. Estupro no Brasil: 99% dos crimes ficam impunes no país. Biografia de um crime sem castigo. 2017. Disponível em: <https://www.metropoles.com/materias-especiais/estupro-no-brasil-99-dos-crimes-ficam-imp unes-no-pais>. Acesso em: 24 de mai. 2024.

SANDAY, Peggy Reeves. The socio-cultural context of rape: a cross-cultural study. Gender violence: interdisciplinary perspectives, p. 52-66, 1997.

SOUSA, Renata Floriano de. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 9-29, abr. 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2017000100009&lng= en&nrm=iso>. Acesso em: 24 de mai. 2024.



 

SOBRE O AUTOR:

Marcos Vinícius Ferreira Corrêa é doutorando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH/UFSC).


 

Este texto é uma adaptação da apresentação realizada pelo autor no I Encontro INCT Estudos do Futebol Brasileiro, realizado de 5 a 7 de agosto, em Florianópolis.



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