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Foto do escritorINCT Futebol

Cosmologia e cultura na Liga de futebol Mbya Guarani – SC

Gabriel Pereira (UNESP)

Eliziane Antunes (UFSC)

Natan Almeida Evaristo (UFSC)

Wesley Santos dos Santos


A Liga Mbya Guarani de Santa Catarina é um campeonato de futebol de sete jogadores idealizado e organizado por e para a comunidade Mbya Guarani de Santa Catarina, buscando saúde, lazer e integração. Fundado em 2018 por alguns jovens Guarani que cursavam a Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atualmente encontra-se em sua 5ª edição.


Essa Liga começou modesta, com poucos tekoa kuery (aldeias) e equipes participantes, mas já se expandiu consideravelmente, tendo, em sua edição mais recente, 25 equipes masculinas e 14 equipes femininas. Nesse contexto, o futebol tem se mostrado uma mola propulsora na integração cultural e territorial, uma vez que há revezamento de aldeias que sediam as rodadas da Liga, organização de caravanas, deslocamentos e encontros.


Cada uma das equipes possui seus próprios nomes, escudos e uniformes, muitos deles repletos de elementos culturais e cosmológicos Mbya Guarani. Entre eles, os guyrapa (arcos-e-flechas), kangua’a (cocares), avaxi ete (milho verdadeiro), mbaraka mirim (chocalho), pindó (palmeira), maiono’i (colibri), além de grafismos, símbolos e nomes que remetem à floresta (ka’aguy) e de homagens a xeramõi e xejary kuery (anciões).


Em sua dissertação de mestrado, Pereira (2024) chegou a identificar e descrever algumas dessas simbologias e seus significados. O objetivo agora, construindo um texto conjunto com mais mãos e cérebros, é interpretar mais escudos e seus elementos ancestrais, culturais e cosmológicos. Com esse propósito, os autores que assinam este texto têm buscado caracterizar os elementos presentes nos escudos das diversas equipes masculinas e femininas que participam da Liga Mbya Guarani de Santa Catarina. Com isso, esperamos também promover a Liga Mbya Guarani para, a partir dela, trazer mais visibilidade à existência, à resistência, à cultura e ao futebol Guarani.


Entre os esforços que temos realizado nesta pesquisa, está a priorização da leitura de textos escritos por autores Guarani, ou que tenham sido escritos por apoiadores dessa comidade e contem com a participação direta de pessoas Guarani. Trata-se de uma forma não só de minimizar as possibilidades de erros e desvios na pesquisa, mas também de valorizar os saberes dos próprios pesquisadores e pesquisadoras dessa etnia. Para tanto, tem sido necessário um cuidadoso trabalho de levantamento em bibliotecas virtuais e repositórios específicos, como o repositório da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a biblioteca digital do Centro de Trabalhos Indigenista (CTI), ou o acervo digital do Instituto Socioambiental (ISA), por exemplo. Adquirir livros impressos na comunidade também se mostrou um bom caminho.


Uma primeira descrição realizada por Pereira (2024) já identificou alguns dos elementos ancestrais, culturais e cosmológicos presentes nos escudos da Liga Mbya Guarani de Santa Catarina. O escudo da equipe Ygua Porã (belo local de águas) feminino, por exemplo, é um dos mais bonitos esteticamente, devido ao grafismo, à flor amarela e ao colibri. Mas é também um dos mais repletos de significado, remetendo provavelmente à visão cosmológica Guarani de criação do mundo.


Escudo da equipe Ygua Porã feminina

Fonte: Facebook/Liga Mbya Guarani de SC (2023)


Kerexu Yxapyry, em um momento privilegiado de conversa, nos contou que, no princípio de tudo, o mundo era composto apenas por água. Nhanderu, “nosso pai”, o deus criador, era apenas um verbo, um fogo, que ainda não tinha corpo. Poderoso, Nhanderu começou a imaginar o mundo. Assim, conforme ele imaginava, o mundo foi sendo criado. Primeiro, ele imaginou uma lança ou uma flecha de madeira que muito rapidamente veio do céu e caiu sobre as águas, fincando-se nelas. Essa flecha de madeira, em contato com a água, gerou uma bela e cheirosa flor em sua ponta. Nesse momento, surgiu um pássaro pequeno que foi apreciar o seu perfume. Esse pássaro, maino’i, que conhecemos como colibri ou beija-flor, no seu intenso bater de asas, tocou a ponta de uma delas no fogo celeste e arremessou faíscas sobre as águas. Nesse encontro entre fogo e águas, surgiu a terra firme. No Plano de Gestão Territorial e Ambiental da Terra Indígena Morro dos Cavalos, essa história também está presente:


Como conta a liderança Kerexu Yxapyry, a origem do mundo começa com um estalo de luz na escuridão e a partir de uma explosão surge o nosso planeta. Nhanderu é a luz na escuridão e com seu bastão dá início à criação de vida dentro do planeta. Um dos primeiros seres foi o maino’i, o beija-flor, que com seu intenso bater das asas concebe o encontro das águas com o fogo, e assim surgiu a terra (Morro dos Cavalos, 2021, p. 17).
A partir de então, os vegetais são criados como uma roupa protetora da terra e das águas. Em seguida, chegam os animais dando continuidade à manutenção e expansão da biodiversidade. O ser humano chega como um guardião, protetor de todas as formas de vida nessas terras. Recebemos a sabedoria para ação e reparo na preservação das vidas (Morro dos Cavalos, 2021, p. 17).



 


Referências

MORRO DOS CAVALOS. Plano de Gestão Territorial e Ambiental da Terra Indígena Morro dos Cavalos: Eko-Etno-Movimento. 2021.

PEREIRA, Gabriel. Liga de futebol Mbya Guarani de Santa Catarina: território, mobilidade e cultura - yvy rupa, djáguata ha’e nhandereko. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade Estadual Paulista (UNESP). Presidente Prudente, 2024. 190 p.


Este texto é uma adaptação da apresentação realizada pelos autores no I Encontro INCT Estudos do Futebol Brasileiro, realizado de 5 a 7 de agosto, em Florianópolis.


Gabriel Pereira é um juruá (não-indígena). Desenvolve projetos com a comunidade da Terra Indígena Morro dos Cavalos desde 2021. Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente.


Eliziane Antunes é uma Mbya Guarani. Organizadora da Liga Mbya Guarani de Santa Catarina. Liderança do Tekoa Tataendy Rupa, Terra Indígena Morro dos Cavalos, Palhoça, SC. Professora na escola indígena Itaty. Graduanda em Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


Natan Almeida Evaristo é um Mbya Guarani. Professor da Escola Indígena Itaty. Graduado em Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


Wesley Santos dos Santos é um Satere-Mawe vivendo entre os Guarani desde 2015. Uma das lideranças do tekoa Tataendy Rupa, Terra Indígena Morro dos Cavalos. Organizador da Liga Mbya Guarani de Santa Catarina.


Assim como esse, diversos outros escudos nos apresentam elementos que nos ajudam a entender um pouco mais da cultura e cosmovisão Mbya Guarani.

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