top of page
Foto do escritorINCT Futebol

A narração de futebol em uma paisagem sonora generificada

Raphaela Ferro


“Mulher narrando futebol e um boi berrando é quase a mesma coisa”, avaliou um narrador paranaense recentemente (Fenaj, 2024). Um ano antes, outro famoso narrador esportivo afirmou, também em entrevista: “Quando vejo que uma mulher está narrando, eu mudo para outro canal onde tem um homem” (Brito, 2023). Em nada essas opiniões se diferenciam daquelas emitidas ainda na década de 1970, quando as primeiras mulheres a narrar futebol no rádio brasileiro fizeram sua estreia na Rádio Mulher (SP). “E o que é que vocês vão dizer no rádio? Falar dos calções com babadinhos dos jogadores?”, comentou um radialista em matéria do jornal Folha de São Paulo sobre a ideia das transmissões de futebol com equipe exclusivamente feminina (Lima, 1971).   


A resistência à voz das mulheres não é algo pontual ou restrito ao universo do futebol. Como discute a historiadora estadunidense Christine Ehrick (2015), em seu livro Radio and Gendered Soundscape, a presença da voz feminina no rádio, desde os primórdios do meio, inseriu uma nova dissonância na paisagem sonora das sociedades contemporâneas. A partir da percepção de que as hierarquias de gênero são percebidas e projetadas em ambientes sonoros, ela elabora o conceito de paisagem sonora generificada (gendered soundscape). “Pensar a história em termos de paisagens sonoras generificadas ajuda a conceituar o som e a voz como lugares em que as categorias “masculino” e “feminino” são constituídas e, por extensão, as formas como o poder, a desigualdade e a performance podem ser expressos por meio do som” (Ehrick, 2015, p. 7). O histórico sequestro (silenciamento) da voz feminina é, para a autora, a marca mais óbvia da desigualdade na paisagem sonora social.


Aqui, propomos uma aproximação do conceito apresentado por Ehrick (2015) para a análise de como as hierarquias de gênero se apresentam nas transmissões de futebol, considerando principalmente a ainda permanente resistência às vozes femininas na função da narração. Pelo que se tem de registros até o momento, as mulheres só começam a fazer parte da história das transmissões radiofônicas de futebol no Brasil após algumas décadas da realização das primeiras jornadas esportivas, nos anos 1930. Na narração, as pioneiras só são identificadas cerca de 40 anos depois. Ainda hoje, a atuação continuada de narradoras profissionais em emissoras de rádio de antena (AM/FM) no Brasil é exceção. Independentemente da região do país, registram-se poucos casos em transmissões radiofônicas de futebol (Ferro; Zuculoto, 2023). Identifica-se, assim, que as vozes femininas ainda causam alguma dissonância na paisagem sonora do futebol no rádio, mas não só por ele. 


Os sons do futebol no Brasil, em geral, refletem a experiência masculina, seja em campo, no estádio, nas arquibancadas ou nas cabines e locais da imprensa e do jornalismo esportivo. O ambiente sonoro do futebol reforça como exemplo, em si, a discussão sobre a existência de uma paisagem sonora generificada. Nela, tudo que diz respeito ao futebol é associado ao que é masculino, numa perspectiva binária (Scott, 2019). Esse antagonismo masculino-feminino determina quem é aceito e quem é elemento dissonante de espaços, o que, entre outros fatores, é demarcado também pela sonoridade ou tendo-a como fator de exclusão. Como considera Gustavo Bandeira (2017, p. 37), “as representações de masculinidades presentes nos estádios tendem a ser heteronormativas, machistas e heterossexistas”.


Elas não soam diferente nas transmissões radiofônicas de jogos e competições da modalidade. Os sons dos rádios portáteis e as vozes que ecoam deles, como considera Fernanda Alves (2022), inclusive, integram o conjunto de sonâncias da paisagem sonora do futebol. E, são, em maioria, masculinos. As vozes femininas são questionadas, vistas como intrusas, não aceitas também porque destoam do que se espera para essa paisagem sonora social. O incômodo que é, muitas vezes, indicado como natural, seja no cotidiano ou nos meios de comunicação, reflete, na verdade, uma construção cultural de gênero. Lori Beckstead (2023) reforça a análise de que o problema não está na qualidade do tom, mas sim no fato de ser um corpo de mulher que está emitindo aquela voz em uma transmissão radiofônica, tornando-a sujeita à crítica, particularmente nesse espaço do esporte. “Ao reclamarem da voz, ouvintes do sexo masculino podem evitar dizer abertamente que simplesmente não gostam que as mulheres falem sobre esporte, ao mesmo tempo em que apresentam uma razão aparentemente legítima para justificar porque elas não deveriam fazê-lo” (Beckstead, 2023, p. 64). 


No Brasil, a relação futebol e masculinidade se exacerba nos discursos – muitas vezes, de ódio – sobre o tema, como em defesa da manutenção de sua paisagem sonora como está. Em 2024, por exemplo, Luciana Zogaib tornou-se a primeira mulher a narrar uma partida de futebol na Rádio Nacional (Chaves, 2024). Mesmo que sua narração do primeiro gol da estreia tenha sido premiada na categoria Redação AM do Festival de Cinema de Futebol (Cinefoot), poucos meses depois, é recorrente que a narradora exponha comentários agressivos que recebe durante o trabalho, seja na Rádio Roquette-Pinto (RJ), no Canal Goat ou, agora, na Rádio Nacional ou na TV Brasil. Ela narra jogos de futebol desde 2018, tendo começado em uma webrádio, mas passou a trabalhar exclusivamente na função e em diferentes veículos de rádio, televisão e internet – o que indica também a dificuldade de se manter na área de forma financeiramente sustentável – apenas em 2024.


Ainda hoje não é possível afirmar que a presença das mulheres nas transmissões radiofônicas de futebol, em emissoras de ondas hertzianas (AM/FM), está efetivamente consolidada. A atuação feminina em diferentes funções tensiona uma percepção estática de gênero na paisagem sonora do futebol que chega ao meio, mas ainda é menor do que em outros tipos de veículos de comunicação, como a televisão e a internet. Identifica-se que o futebol e o rádio esportivo, e sua indissociabilidade, são permeados por uma paisagem sonora generificada, que exclui mulheres. Na verdade, assim como o radiojornalismo em si, exclui qualquer sonoridade que destoe de uma heteronormatividade masculina. “É possível identificar na literatura referente à radiofonia uma rejeição ao que possa soar em tom agudo, muito vinculado ao feminino, contribuindo para a exclusão não só de mulheres, mas de qualquer pessoa que não reproduza o tom padrão na locução, mesmo entre homens” (Ferro; Gomes; Zuculoto, 2024, p. 99). 


Do início das irradiações de jogos de futebol até meados dos anos 1960, as equipes das jornadas esportivas foram se organizando como em um clube, em que praticamente somente homens eram permitidos. Eram eles que relatavam o esporte, o futebol praticado também por homens, exclusivamente. A modalidade, inclusive, era (e é) muitas vezes utilizada como argumento para manter as mulheres distantes, como se houvesse aí um fator relacional. Ainda hoje, afirma Noemi Bueno (2018), prevalece uma mentalidade que relaciona o futebol a espaços de reforço e valorização das masculinidades. Essa exclusão foi, a partir da imposição do afastamento de mulheres da prática do futebol por lei, interiorizada pela maioria das mulheres brasileiras como natural, afirma Carmen Rial (2021). Essas realidades mantêm a hierarquia de gênero na paisagem sonora social, assim como o próprio futebol ainda tem o reforço da masculinidade em sua sonoridade. 


Referências:

ALVES, Fernanda Serafim. Os sons do futebol gaúcho: um estudo da paisagem sonora dos estádios e do papel do rádio no imaginário de uma identidade regional. 2022. 95 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2022.


BANDEIRA, Gustavo Andrada. Do Olímpico à Arena: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio. 2017. 342 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. 


BECKSTEAD, Lori. Past the gate. Women in sports talk radio. In: MCDONALD; Kathryn. CHIGNELL, Hugh (Org.). The Bloomsbury Handbook of Radio. New York: Bloomsbury Academic, 2023. p. 62-78.


BRITO, Marcondes. Veterano Sílvio Luiz detona a narração das mulheres no futebol. Metrópoles, Brasília, 8 ago. 2023. Futebol ETC. Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/futebol_etc/veterano-silvio-luiz-detona-a-narracao-das-mulheres-no-futebol. Acesso em: 14 nov. 2024. 


BUENO, Noemi Corrêa. A (in)visibilidade das mulheres em programas esportivos de TV: um estudo de casos no Brasil e em Portugal. 2018. 408 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Bauru, SP, 2018. 


CHAVES, Lincoln. Rádio Nacional estreia narração e equipe 100% femininas no Brasileiro. Agência Brasil. Brasília. 13 abr. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2024-04/radio-nacional-estreia-narracao-e-equipe-100-femininas-no-brasileiro. Acesso em: 14 mai. 2024. 


EHRICK, Christine. Radio and the gendered soundscape: women and broadcasting in Argentina and Uruguay, 1930-1950. New York (EUA): Cambridge University Press, 2015.


FENAJ. Nota de Repúdio às declarações machistas de Osires Nadal. Federação Nacional dos Jornalistas, Curitiba, 9 out. 2024. Disponível em: https://fenaj.org.br/nota-de-repudio-as-declaracoes-machistas-de-osires-nadal/. Acesso em 14 nov. 2024.


FERRO, Raphaela Xavier de Oliveira; GOMES, Juliana; ZUCULOTO, Valci Regina Mousquer. Voz e gênero no radiojornalismo brasileiro: marcas históricas de exclusão de mulheres. Radiofonias: Revista de Estudos em Mídia Sonora, Mariana, MG, v. 14, n. 3, p. 91-112, out./dez. 2024. Disponível em: https://periodicos.ufop.br/radiofonias/article/view/7010/5509. Acesso em: 05 fev. 2024.


FERRO, Raphaela Xavier de Oliveira; ZUCULOTO, Valci Regina Mousquer. Narração do futebol por mulheres no rádio brasileiro: registros históricos de transmissões entre a década de 1970 e o início dos anos 2000. Radiofonias: Revista de Estudos em Mídia Sonora, Mariana, MG, v. 14, n. 1, p. 105-133, jan./jul. 2023. Disponível em: https://periodicos.ufop.br/radiofonias/article/view/6832/5375. Acesso em: 30 jan. 2024.


LIMA, Nelio. As mulheres em campo, transmitindo o jogo. Folha de São Paulo. São Paulo, Ano LI, n. 15.358, p. 16, 4 jul. 1971. 


RIAL, Carmen. #Déjala trabajar: el fútbol y el feminismo en Brasil. In: FISCHER, Thomas; KÖHLER, Romy; REITH, Stef an (org.). Fútbol y sociedad en America Latina. Frankfurt-ALE: Editorial Vervuert, 2021. p. 241-256. 


SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 49-80. 


Sobre a autora:

Raphaela Ferro é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPGJor) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Pesquisa a história das transmissões radiofônicas de futebol no Brasil, considerando a participação de mulheres na narração esportiva. É mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). 


Este texto é uma adaptação da apresentação realizada pela autora no I Encontro INCT Estudos do Futebol Brasileiro, realizado de 5 a 7 de agosto de 2024, em Florianópolis.


Como citar:

FERRO, Raphaela. A narração de futebol em uma paisagem sonora generificada. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.35, 2024.



15 visualizações0 comentário

Posts Relacionados

Ver tudo

Comments


bottom of page